quarta-feira, 5 de outubro de 2011

CM - Crise global obriga BC a aposentar regime de metas de inflação

Segundo o coordenador de Análises e Previsões do Ipea, Roberto Messemberg, Banco Central já iniciou substituição do regime de metas por um novo modelo de política monetária. Nesta entrevista, o economista analisa também a evolução do processo inflacionário brasileiro, prevê mais estabilidade de preços em 2012 e critica os juros altos – para ele, "uma renda de monopólio".

Marcel Gomes - da Carta Maior

SÃO PAULO – Na semana passada, ao divulgar o relatório trimestral de inflação, o Banco Central acenou, mais uma vez, que manterá sua política de redução das taxas de juro. No mercado e na imprensa, economistas e jornalistas criticaram a decisão, sob a justificativa de que autoridade monetária estaria arriscando a credibilidade do regime de metas de inflação, uma vez que a evolução dos preços ainda mantém a taxa anual longe da meta de 4,5%.

Entretanto, para o coordenador da área de Análises e Previsões do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Roberto Messemberg, a crise financeira internacional, iniciada em 2008, tornou o regime de metas "um instrumento tosco para lidar com essa realidade mais complexa". "O regime de metas foi desenhado para um outro tipo de funcionamento da economia. (...) A política monetária atual (...) precisa monitorar o preço dos ativos em um cenário de taxas de câmbio voláteis e tem a tarefa inglória de determinar se eles estão numa trajetória de bolha", explica.

Segundo Messemberg, os bancos centrais de outros países já se ajustaram à nova realidade e o Brasil não poderia ficar de fora, apesar da resistência do mercado financeiro. O desafio do Banco Central conduzido por Alexandre Tombini é conquistar a credibilidade da sociedade para um novo modelo de política monetária, cuja receita terá de ser construída na prática. Nesta entrevista concedida à Carta Maior, o economista analisa ainda a evolução do processo inflacionário brasileiro, prevê mais estabilidade de preços em 2012 e ainda critica os históricos altos juros do país – para ele, "uma renda de monopólio que não é explicada nem pelo risco-país, nem por nada".

Carta Maior - Apesar de pressões do mercado financeiro, o BC sinaliza que continuará reduzindo a taxa básica de juro, pois acredita que a crise internacional ajudará a derrubar a inflação interna. O senhor concorda com essa estratégia?

Roberto Messemberg - O agravamento da crise está mostrando que o BC tem razão. No início do ano, havia a avaliação de que o nível de atividade estava acelerado demais e que o banco deveria elevar o juro para fazer a inflação convergir para o centro da meta. Mas as análises do BC sempre mostraram preocupação com a deterioração no cenário global. Então foi feita uma elevação apenas moderada da taxa, pois havia o receio de que uma puxada muito forte no juro, que sempre demora mais de nove meses para ter efeito, atingisse a economia justamente quando ocorresse um choque externo.

CM - Foi o que ocorreu em 2009, quando juro alto daqui e crise lá fora causaram recessão.

RM - É esse tipo de erro de calibragem que o BC quer evitar agora. Desta vez, eles também combinaram sua gestão com as medidas macroprudenciais, com o objetivo de desacelerar o crédito. Assim se evita prejudicar o investimento, que é muito sensível à taxa de juros de longo prazo. Se caírem os investimentos, quando a economia se recuperar de novo, a capacidade produtiva será pequena para agüentar o nível de expansão. O BC quer evitar o vôo de galinha. Se a alta de preços é uma preocupação, na visão do banco o cenário adverso por si só já traria uma desaceleração no nível de atividade e seguraria a inflação.

CM - Até porque boa parte da inflação é importada, gerada pela alta das commodities.

RM - Isso no mundo inteiro. Não faz sentido, como muitos pregavam na época, e eu acho que o BC agiu com correção, compensar um choque de preços externos causado por commodities com a derrubada do nível de atividade interna. Até se conseguiria manter a taxa de inflação dentro da margem dada pelo regime de metas de inflação, ainda que provavelmente acima do centro, mas para isso haveria uma perda de produto que não se justifica. O ganho obtido em termos de redução de inflação não compensaria a destruição causada na atividade econômica. Por isso faz sentido o BC ampliar o horizonte de convergência da inflação, a fim de que a economia absorva o choque externo. Em um regime de metas de inflação, o objetivo é amortecer os efeitos de difusão secundária do choque, e não contra-restar todo o choque, porque senão seria necessário produzir uma queda brutal da atividade.

CM - Qual a origem da desconfiança do mercado?

RM - Muitos avaliavam que teria de acontecer muitas coisas no cenário externo e de um determinado jeito para que a estratégia do BC desse certo. E eu acho que o tempo mostrou que o BC de fato estava correto, porque o cenário acabou se deteriorando significativamente e o nível de atividade no país enfrentaria uma desaceleração significativa. Quanto à inflação de 2011, ela está praticamente dada, pelo choque de commodities, elevação do nível de preços do setor de serviços e uma certa indexação de preços monitorados.

CM - Então só restava pensar em 2012?

RM - Exatamente. O BC abriu o horizonte de cálculo e reduziu bruscamente o juro em função do impacto do choque externo sobre o nível de atividade. Não adianta jogar o juro lá em cima, cortar o crédito e termos um PIB negativo a curtíssimo prazo. O PIB pode cair 3% e a inflação continuará praticamente a mesma. E o prejuízo mais à frente será ainda maior, por causa do efeito defasado. O BC tem de calibrar uma equação complicada em um mundo que mudou muito, e tem acertado no alvo.

CM - Quais mudanças mais influenciam a política monetária do BC?

RM - A crise de 2008 fez com que houvesse uma injeção brutal de liquidez no mundo, desvalorização do dólar e volatilidade das taxas de câmbio. Isso obriga que se acompanhem outras variáveis da economia e não apenas a taxa de inflação, que é a base do sistema de metas. Passou a ser necessário monitorar também a inflação de ativos, evitar bolhas, e isso tudo sobrecarregou a política monetária. Não se pode mais ficar preso a um modelo que foi feito para uma época que não existe mais. Só que grande parte do mercado continua preso a esse modelo, que é simples e aparentemente de boa funcionalidade. Mas aquilo era bom quando você tinha aquilo que o Bem Bernanke [presidente do FED, o banco central dos Estados Unidos] chamava de "a grande moderação". Você fazia apenas uma sintonia fina da política monetária e as economias cresciam a partir da confiança nos mercados de ativos. Inflação e crescimento eram calibrados com a taxa básica de juros e uma certa estabilidade da taxa de câmbio e preços dos ativos. Se houvesse estouro de bolha, como o Alan Greespan [ex-presidente do FED] preconizava, isso poderia ser absorvido ao longo do processo.

CM - Essa é a receita do regime de metas de inflação caducou?

RM - O regime de metas foi desenhado para um outro tipo de funcionamento da economia. Mas, agora, percebeu-se que bolhas de ativos podem arrebentar a economia, gerando efeitos em cascata que derrubam nível de atividade e paralisam a produção, porque interrompem o circuito do crédito. A política monetária atual tem de olhar para tudo isso. Precisa monitorar o preço dos ativos em um cenário de taxas de câmbio voláteis e tem a tarefa inglória de determinar se eles estão numa trajetória de bolha. O regime de metas é um instrumento tosco para lidar com essa realidade mais complexa. Mas o BC não pode dizer isso, porque todo mundo ficaria louco. A referência do mercado ainda é o regime de metas, e daí essa dissonância entre a visão que o mercado tem da condução da política econômica e a atuação do BC diante da expectativa do mercado, que ainda age como se o mundo não tivesse mudado. Isso causa um ruído na própria condução da política econômica, pois uma das funções do BC é coordenar as expectativas do mercado. E, se ele perde esse controle, fica mais difícil colocar a economia nos trilhos, uma vez que as expectativas de mercado também influenciam o setor real da economia.

CM - Esse ajuste de política monetária já foi feito pelos bancos centrais de outros países?

RM - Sim, todo mundo está com as taxas de juro lá embaixo. Nós reduzimos o juro aqui, mas a diferença continua enorme. Se você analisar o diferencial da paridade coberta do juro, que é a diferença entre a taxa doméstica e a internacional ajustada pela expectativa de desvalorização cambial e pelo risco do câmbio, ele é muito grande e não deveria ser assim. O risco-país do Brasil é baixo, tanto que entrou uma enxurrada de dinheiro externo justamente pela perspectiva de melhora dos fundamentos da economia brasileira em relação ao resto do mundo. Então, se não se explica o juro brasileiro pelo diferencial de paridade coberta, eu só posso vê-lo como uma quase-renda, uma renda de monopólio que não é explicada nem pelo risco-país, nem por nada.

CM - Sem o recurso do juro, como atacar a inflação?

RM - A taxa de inflação é cada vez menos relacionada ao nível de atividade. O problema neste ano foi o preço das commodities, que subiu puxado pela política de expansão monetária nos países desenvolvidos. Mas esse choque está retrocedendo. Ficou claro que houve um overshooting da inflação, uma ultrapassagem da taxa de curto prazo em relação ao nível que ela tenderá a se estabilizar no longo prazo. Isso ocorre porque a recente desvalorização do real gera uma mudança de preços relativos, e com isso a taxa de inflação momentaneamente se acelera em relação a seu nível de longo prazo. A questão é que o BC não tem obrigação de controlar preços relativos, mas sim a taxa de inflação de longo prazo. Por isso ele estendeu o prazo de convergência, deixando o overshooting acontecer, esperando que ele acabe logo mais. O BC está calibrando a política monetária com maestria, se você considerar que ele herdou um arcabouço que não é apropriado para lidar com essa situação.

CM - Há algum efeito positivo desse overshooting?

RM - Essa mudança de preços relativos ocorre em favor do setor industrial, que estava perdendo muita rentabilidade. Isso é positivo, porque é a indústria que investe na economia brasileira, e não o setor de serviços.

CM - Mas essa mudança de preços relativos é definitiva? Não há chance de o real se valorizar novamente?

RM - Há muita volatilidade, mas acredito realmente que o patamar mudou. E isso é bom, apesar da aceleração transitória da taxa de inflação, porque o setor industrial vai poder investir mais e evitar que, no futuro, haja repiques de inflação por conta de flutuações na demanda agregada.

CM – Ficou claro que o BC está desenhando uma política para substituir o regime de metas de inflação. Já há um nome para essa nova receita?

RM - Não existe. No seminário do G-20 que tivemos aqui no Rio de Janeiro, debatemos exatamente isso, que os bancos centrais têm agora mais objetivos para cumprir do que no cenário anterior, quando o regime de metas parecia resolver todos os problemas de gestão monetária. Esse regime conseguiu credibilidade na sociedade, e o novo desafio do BC é justamente o de administrar um regime diferente que precisa ganhar legitimidade, mas que a sociedade ainda vê com desconfiança, pois mexe com alterações de preços relativos que provocam mudanças redistributivas.

Link:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18625



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