sábado, 30 de maio de 2015

Europa se "latinoamericaniza"

    

Europa se 'latinoamericaniza' e troca Estado de bem-estar por política social à brasileira, diz professora

O que há em comum entre o ajuste fiscal que ameaça retirar direitos dos trabalhadores no Brasil e as medidas de austeridade que levaram milhares de gregos, espanhóis e portugueses às ruas nos últimos meses? Para Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que acaba de voltar de um pós-doutorado em Portugal, o que está acontecendo nos países da Europa do Sul é um processo de "latinoamericanização".

Sociedades europeias que tinham conquistado importantes direitos sociais, através de revoluções ou da experiência do Estado de Bem-Estar Social, hoje adotam uma "política de mínimos", em que as políticas sociais se tornam um meio de transferir recursos do fundo público para o capital privado. E esse modelo, segundo Sara, tem, em grande medida, o Brasil como referência mundial.

A entrevista é de Cátia Guimarães, publicada por EPSJV/Fiocruz, 26-05-2015.

Nesta entrevista, além de descrever com mais detalhes a situação de Portugal, ela explica as origens históricas da política de austeridade — que no Brasil surge como contrarreforma do Estado —, analisa a "divisão de tarefas" desse processo entre os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma Rousseff e desmistifica a ideia de que ajuste fiscal e austeridade significam menos gastos públicos. Ela também comenta a reação que tem se construído na Europa por meio de partidos como Syriza, na Grécia, e Podemos, na Espanha.

Eis a entrevista.

A que momento podemos nos remeter para explicar a forte política de austeridade que recai hoje sobre países como Grécia, Portugal, Espanha e Itália?

A determinação de fundo, na minha compreensão, está relacionada ao fim daquele ciclo mais "virtuoso" de extraordinários lucros que possibilitaram enorme crescimento do capital no pós-2ª Guerra Mundial, quando, por essas e outras razões, foi possível o Estado de bem-estar social. Até esse momento, ainda havia lugares e setores da economia que tinham possibilidade de crescimento e de se tornarem capitalistas. Não é possível aprofundar esse tema agora, mas é preciso relacionar esse momento virtuoso em uma parte do mundo — a Europa — com a barbárie em curso na África e em muitos países da América Latina, que foram submetidos a ditaduras cruéis do grande capital. Outro elemento importante para garantir um certo fôlego na manutenção das estruturas dos Estados Sociais e de direitos dos trabalhadores no continente europeu foi a conversão dos países do Leste Europeu ao modo capitalista de produção a partir de 1989. Mas, uma vez esgotada a possibilidade de expansão da acumulação capitalista pela expansão territorial, a lei férrea do modo capitalista de produção impõe-se sobre aquelas áreas que antes eram ocupadas pelo Estado. Refiro-me a um fenômeno que não é original desse período, mas que ganha agora uma qualidade nova: a privatização do fundo público, que deve ser transferido aos capitais já que o Estado não deve ser tão largo.

Aquela fração do mesmo fundo público que viabilizava as políticas sociais como direito dos trabalhadores passa a constituir os montantes que, por múltiplas e facetadas formas, devem ser agora transferidas aos capitais. Assim, racionalidade do Estado, enxugamento, vida acima das possibilidades, déficit, austeridade são expressões diversas para justificar a mesma política de aumento da exploração do trabalho. São austeros os capitais, são imprudentes gastadores irresponsáveis os trabalhadores. Então, austeridade tem que ser para e sobre os trabalhadores. Em Portugal, por exemplo, os políticos e os capitais, dizem que os trabalhadores viveram acima das suas possibilidades; curiosamente, essa constatação não faz referência à porção do fundo público destinada aos capitais durante suas crises e fora delas. Portugal, nisto foi emblemático: no ano de 2014, o socorro ao BES (Banco Espírito Santo) realizou-se amparado no fundo público, o mesmo fundo que não se pode utilizar para as aposentadorias (ditas reformas, naquele país) por conta de uma "gestão austera".

A crise dos anos 1970, o começo do esgotamento desse ciclo de crescimento pós-guerra traz um sinal muito claro: o modo de produção capitalista está começando a ter mais uma das suas dificuldades de crescimento. Com o fim do Leste Europeu, há um leve refresco para esse crescimento, mas aí vêm Margareth Tatcher e Ronald Reagan. Eu acho que a política mais recente de austeridade tem suas raízes aí, no marco temporal que cobre dos anos 1970 ao começo dos anos 1990. Aí começam as políticas que já foram chamadas de 'ajuste' e agora, na Europa, se chama de austeridade. O bloco de regramento de países europeus começa com a construção da Comunidade Europeia, do Euro, de todo aquele disciplinamento imposto aos países para que pudessem participar de um bloco econômico. E para isso era preciso fazer já alguns ajustes: de produtividade, de contratação da força de trabalho, de valores de remuneração do trabalho necessário, etc. Mas ainda não era tão brutal como aquilo que se desenhou a partir de 2007/2008, com a crise. Nesse momento, o ajuste, evidente, nos países da Europa no Sul — mas que não é diferente do que acontece aqui —, significa claramente ser austero com os "muitos" direitos que os trabalhadores conquistaram por meio de uma legislação de trabalho um pouco mais protetora.

Você conheceu de perto a experiência de Portugal. Como esse processo está se dando por lá?

Lá os trabalhadores conseguiram, especificamente a partir da Revolução dos Cravos, de 1974, direitos que nunca tinham tido, direitos que inexistiam em Portugal e na Espanha, mas que já tinham vigência na Inglaterra, França, Suécia, Alemanha, Itália, como jornada de trabalho; salários decentes; a construção de uma política social universal de educação, saúde e segurança social (que é como eles chamam a previdência), e de habitação. Essas políticas básicas de emprego e políticas sociais são de construção recente em Portugal. A revolução em Portugal durou cerca de 19 meses e o que aconteceu depois foi um acordo pelo alto e uma "democratização", que na verdade foi a reconstrução da política burguesa. Só que como tinha havido uma revolução, os direitos sociais tinham que ser garantidos. Porque a burguesia foi corrida de lá — uma parte muito importante dela veio para o Brasil —, o dinheiro no banco foi bloqueado pelos trabalhadores. Com a "reinstitucionalização democrática", ela voltou aos poucos, recebeu indenizações — porque havia deixado suas casas e suas fábricas, muitas delas ocupadas pelos trabalhadores, num modelo de autogestão. Então, mesmo após a "redemocratização burguesa" , a burguesia não teve como retirar os direitos alcançados pela revolução dos cravos no período imediatamente posterior à sua volta ao país. O ataque aos direitos teve de ser uma medida urdida com cuidado: suas primeiras iniciativas ocorrem por volta dos anos 2000, com os socialistas. Aí começam a tirar aquelas coisas que parecem pequenas, e que não se nota no dia a dia, mas que, quando se faz um acúmulo de todas elas, a população vê que foi muito. Por exemplo, a agenda de atendimento nos hospitais e postos de saúde começa a ser mais demorada, começa a priorizar um certo tipo de doenças a serem atendidas.

Mas antes não era assim. Isso foi uma desconstrução. E um povo que nunca tinha tido esses direitos passou a ter uma certa confiança cultural de que esses direitos não seriam alterados nunca. Então, deixou a política para os políticos, que é um pouco o que aconteceu em quase todos os países. E os políticos, deixados à sua própria sorte, não representam os trabalhadores; em sua maioria, representam o capital. Agora, com a crise de 2007/2008, Portugal teve que fazer um novo ajuste. Os grandes capitais, pela via da Troika, passam a exigir da periferia da Europa regramentos condizentes com a produtividade do trabalho já que ela tem uma alta produtividade do trabalho, mas não tão alta como a da Alemanha, por exemplo. Para esse conjunto de trabalhadores da Europa do Sul exigem-se reformas como, por exemplo, a oferta de saúde só para aqueles que não consigam pagar por ela – em Portugal, para ser atendido pelo sistema nacional de saúde sem pagar as tais "taxas moderadoras", há que se provar que é pobre, que ganha até um determinado percentual do salário mínimo. As universidades públicas requerem o pagamento pelos estudantes de taxas chamadas de "propinas", que podem alcançar os 1200, 1400 euros ao ano. Essa tragédia tem empurrado uma parte importante da juventude para fora do ensino superior

Todas essas mudanças se dão a partir de 2007/2008?

As taxas moderadoras na saúde sim e o agravamento das propinas também. Elas já existiam na universidade desde, talvez, 2001, mas eram como uma pequena taxa de matrícula. De 2010 para cá, são outra coisa. Foi quando a Troika chegou a Portugal e impôs o "memorando do entendimento", como fez na Grécia, que a situação de vida e de trabalho da classe trabalhadora portuguesa agravou-se perigosamente. Esse memorando diz o que tem que se fazer, diz qual política os soberanos governos devem implementar. É de 2010 e se renova todos os anos para garantir os empréstimos ao país que está em crise. A austeridade implica — e eu digo isso com ironia — a "democratização" das condições rebaixadas da Europa a partir de um referencial da América do Sul, uma latinoamericanização cujo modelo principal é o Brasil.

Em que essa política de austeridade na Europa se parece com o Brasil?

Na redução dos direitos pela reforma das políticas sociais, que são rebaixadas. Em Portugal, havia uma escola em cada aldeia, agora estão fechando e transportam as crianças e jovens de ônibus de um lugar para outro. Os direitos do que eles chamam de contrato coletivo — férias, 13º salário — começam a desaparecer ou ser reduzidos: os servidores públicos tiveram em 2011 ou 2012 uma redução que chegou a quase 30% do seu salário. Não é que não tenham recebido aumento de salário pela inflação: o Estado cortou os salários, com a justificativa de manter o emprego. O outro pilar dessa austeridade via Estado é tornar o fundo público devedor de títulos públicos, securitizar o fundo público. Para aumentar o fundo público – que é a política de austeridade – o Estado tem que vender títulos e, com isso, aumenta a dívida. Eu diria que a forma dessas sociedades está ficando muito parecida com a do Brasil por esses três caminhos. 

Ao par disso, tem se desenvolvido lentamente uma política de repressão na Itália, na Espanha, na França e na Alemanha, embora ainda não tão forte como aqui. Tem aumentado nesses países a violência policial sobre os mais pobres, os que vivem em bairros sociais, os trabalhadores mais precarizados e os imigrantes. A austeridade consiste nisso. A Europa tem estimulado a população a tratar os imigrantes como estranhos. Austeridade acaba dando vazão para o crescimento da xenofobia porque reduz o emprego.

Como essa política tem afetado os direitos trabalhistas?

Eu vou te dar um dado que eu recebi recentemente — compilado pela pesquisadora Maria da Paz Campos Lima, do grupo de estudos de que faço parte em Portugal — que ilustra as consequências dessa austeridade. Em Portugal, o número de trabalhadores abrangidos pelos contratos coletivos era de quase 2 milhões em 2008. Contratos coletivos são os contratos de uma categoria. Em 2008, eram precisamente 1.894.846. Ou seja, quase metade dos trabalhadores assalariados. Hoje, em 2015, só 246.643 trabalhadores, cerca de 5% da população ativa, são protegidos por contrato coletivo. Lá existe uma coisa que eles chamam de trabalho "a recibos verdes", que são uma flexibilização da legislação trabalhista, do contrato coletivo. O Estado paga uma parte ou dá isenção ao empregador que contrata a recibos verdes. Quem é contratado a recibos verdes não tem direito a férias remuneradas, 13º terceiro salário e o valor do seu salário é menor. Então, é o rebaixamento do valor da força de trabalho, com um contrato individual e sem direito algum. Isso se dá com a política de austeridade da troika — que é quem impõe essa política, claro que em consonância com os burgueses de cada país —, de 2008 para 2014, que é o período que a crise bate em Portugal e a partir de 2010, 2011, com o memorando do entendimento. É brutal. Temos um êxodo gigantesco de força de trabalho. Nas décadas que se seguiram à revolução de abril de 1974, Portugal foi um dos países que alcançou, proporcionalmente a população, um dos maiores índices de doutores da Europa. Mas eles não têm onde trabalhar. Ou trabalham a recibos verdes ou migram. Eles têm migrado, e muito.

Essa política de austeridade também recai sobre os países que não são da periferia da Europa?

Claro. Especialmente na França e na Alemanha, a locomotiva da Europa, os salários estão sofrendo um rebaixamento e diminuição dos postos. A grande massa de imigrantes portugueses, espanhóis que vão para a Alemanha começa a ter dificuldade de manutenção dos seus empregos lá porque também começam a sofrer uma disputa grande com os alemães. Eles são estimulados a ir, tanto pela Alemanha e França quanto pelos países que estão em crise. O primeiro ministro disse para os trabalhadores portugueses no ano passado: imigrem, não tem emprego aqui. Só que quando eles chegam à Europa pujante, aumentam a oferta de trabalhadores dispostos a qualquer trabalho e isto faz cair o valor da força de trabalho empregada, inclusive da nativa. Quando os empregos começam a restringir, a própria classe trabalhadora começa a hostilizar os trabalhadores vindos de outros países; começam a crescer fenômenos como o da xenofobia.

E no Brasil? A partir de que momento podemos identificar mais claramente a prevalência de uma política de austeridade?

Eu acho muito boa a inspiração do Otavio Ianni — que ele não desenvolveu muito, mas está no livro 'Ditadura do grande capital' — que mostra como a dívida tem, da ditadura para cá, dois momentos muito marcados. Naquele momento a dívida foi um dos elementos para a ditadura fazer o trânsito consolidado – que já vinha acontecendo desde JK pelo menos — da economia brasileira para a idade dos monopólios. O endividamento foi um mecanismo de "modernização" das estruturas do Estado e produtivas para o país, o que incluiu a construção das estruturas financeiras que ainda não existiam: remodelação da bolsa de valores, construção da Comissão de Valores Imobiliários, bancos nos estados, um conjunto de organismos necessários a um novo momento do desenvolvimento capitalista no Brasil. Então, a dívida era um instrumento para essa "modernização" (com muitas aspas, porque é a modernização capitalista) necessária à passagem para um novo momento. A dívida, nesse período da ditadura, é especialmente dívida externa. Houve aquele crescimento brutal, passamos por Sarney e veio a Constituição. Eu não faço parte daqueles que consideram que se instaurou aqui naquele momento um certo Estado de Bem-Estar Social porque o que houve foi muito limitado e não se deu como naquelas partes da Europa em que isso foi desenvolvido. Para ser Estado de Bem-Estar social exigiria políticas sociais e políticas de emprego combinadas, de desenvolvimento econômico.

O segundo momento, que eu identificaria mesmo como o do ataque a essas políticas, começa com Fernando Henrique. É um projeto profissional, científico, organizado, muito bem construído do ponto de vista do capital de reestruturação do Estado. Aquilo que nós chamamos de contrarreforma já é a austeridade aqui. É nisso que consiste a austeridade: o Estado entregar o fundo público ao capital, gastar menos com direitos sociais, com políticas sociais e destinar esses recursos ao capital. Só que tem um limite em vender os bancos, as empresas: o limite é que elas acabam. O fundo público alocado nas políticas sociais é renovado todos os anos, todos os meses, todos os dias por meio dos impostos. Então, me parece que o capital acordou para esse maná de dinheiro. Existe uma divisão do trabalho com relação a essa política de austeridade. Fernando Henrique faz a contrarreforma do Estado, prepara os instrumentos para a continuidade disso, mas não consegue realizar todo o projeto. Então, continua a venda das estatais, privatiza os bancos, enxuga o Estado, põe maiores dificuldades para o alcance das políticas sociais. Lula e Dilma também privatizam aeroportos, estádios, estradas, mas atuam já num segundo momento da austeridade, no uso do fundo público para os trabalhadores. E no que consiste? O Brasil é emblemático e modelo numa política social que está se desenhando especialmente na Europa do Sul, que é essa política social de mínimos, de destituição de direitos, para usar menos recursos do fundo público, e ao mesmo tempo para abrir espaço para novos negócios. Retira-se dinheiro das políticas sociais para que sobre mais dinheiro para essa nova forma do segundo momento da dívida, o que é uma manipulação do fundo público para pagar os títulos públicos. Isso é algo novo, não porque antes não existisse, mas porque ganha uma centralidade no montante do fundo público que é destinado para isso enquanto para as outras coisas tem-se uma redução brutal. Esse é o modelo brasileiro.

No senso comum, a defesa da austeridade se baseia num discurso de diminuição de gastos do Estado. Hoje, vê-se claramente um grande fluxo de transferência direta de dinheiro do fundo público para empresas privadas, por exemplo, na educação, com programas como Prouni, Fies e Pronatec. Como isso convive com esse discurso de austeridade? Porque não tem diminuição geral do gasto do Estado no Brasil hoje.

Nem no Brasil nem em lugar nenhum. Ajuste, austeridade são formas ideológicas de embalar uma transferência monumental de recursos públicos e um assumir cada vez mais do Estado que é um Estado de classe. Em Portugal, é desenvolvido o tempo todo o discurso de que vivemos acima das nossas possibilidades. Então, o ajuste tem que ser feito nas políticas sociais, porque os trabalhadores é que estão vivendo acima do que o Estado pode bancar. O capital entendeu o seguinte: há um limite para construir e vender carros, computadores, celulares e tudo no planeta. Além disso, não há mais espaço físico para ser integrado na acumulação capitalista — a China já está integrada, quem mais vai sobrar? A Coreia? Sim, mas isso não resolve a crise. Diante desse cenário, há que se utilizar mais do que nunca o fundo público. Nunca na história foi tão absolutamente claro pela análise do fundo público que esse é um Estado de classe. A burguesia se reapropria daqueles fundos que antes tinham alguma destinação para o trabalhador. De que forma? Reduzindo os recursos destinados à política social de modo direto: essa é condição para abrir novas frentes de acumulação, na previdência privada, na educação privada. Só que, ao mesmo tempo, esses novos campos de acumulação não têm gente que possa consumir esses serviços. Não dá para consumir essas mercadorias em quantidades de modo a garantir uma lucratividade média elevada. Você forma o maior conglomerado de ensino privado superior no Brasil, mas à custa de financiamento público para que os estudantes frequentem essas universidades. Então, o fundo público, transferido assim, parece até que é outra forma de direito. O menino que tem a bolsa, que vai lá para o Prouni, acha que isso é um direito. O fundo público está sendo transferido para a instituição e endividando o trabalhador. Sem o Estado transferindo essas quantidades amazônicas de recursos no Brasil, em Portugal, na França, na Alemanha e nos Estados Unidos, o capitalismo já teria colapsado.

A presidente Dilma fez recentemente um discurso televisivo em que anunciava claramente medidas de austeridade. Parece um movimento de retirada de direitos mais abrupto do que se teve nos últimos 12 anos. O que está acontecendo no Brasil hoje?

Eu acho que nós vivemos sob essa austeridade também nos governos Lula brutalmente, mas havia medidas que pareciam fogos de artifício, ou seja, tinham algum impacto. Em Portugal, uma importante médica, professora universitária, me disse: 'Sara, a FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura] acaba de mostrar que a fome reduziu no Brasil e isso é inegável'.

Mostrei a ela os recursos do Bolsa Família e ela não acreditava. Como nunca teve Estado de Bem-Estar Social, como nunca teve política universal de combate à fome, a miséria é tanta no Brasil que 40 euros mensais numa família com três crianças têm algum impacto. Sim, é um impacto quantitativo: farinha e feijão. Não é um impacto qualitativo, de reversão da fome, de reversão da miséria intelectual que a dieta impõe, etc. Eu diria que, do ponto de vista dos mais pobres, foi sempre austeridade, na medida em que essas políticas nunca foram para retirar os trabalhadores dessas condições. Mas vamos lá: é verdade que as camadas médias viajaram mais, que os trabalhadores moradores das grandes cidades passaram a comprar TV, geladeira, computador. Está bem: aceitamos tudo isso.

Essa bolha de consumo se fez em função de crédito para o trabalhador. Uma das pernas do endividamento é feito sob o crédito consignado para os trabalhadores do serviço público e para os aposentados, que são aqueles que, como têm um ganho salarial mensal, podem financiar para a família que perdeu o emprego a compra da TV, a partir do crédito consignado que o banco dá, com a garantia da aposentadoria. Isso foi o governo Lula que fez. Eu tenho chamado esse instrumento de política social dos governos Lula e Dilma de monetarização e financeirização, que é a conversão da política social na forma dinheiro e que, portanto, entra pelos condutos da financeirização, pelas instituições bancárias, e se torna crédito. Marx, no livro 3 [do Capital], tem uma genial sacada, em que ele diz que todo o dinheiro disponível na sociedade progressivamente vai se tornar capital monetário, que é capital moeda guardado pelos bancos, e esse capital vai se transformar em capital portador de juros porque ele vai ser emprestado. O que esses caras fizeram? – é por isso que o Obama chama o Lula de 'o cara', né? Fizeram do fundo público destinado às políticas sociais elementos de acumulação para o capital bancário e financeiro. Transforma tudo isso em dinheiro. A Bolsa Família não é um conjunto de serviços que o pobre no Brasil pode utilizar: não é escola, não é alimentação na escola, não é o hospital de boa qualidade. É um dinheiro que ele recebe via banco e que, individualmente, é uma miséria, mas aquilo que entra no banco é, na totalidade, um montante muito considerável. Esse foi o traço mais inovador que esse conjunto de ações que nós chamamos de austeridade trouxe para as políticas sociais. Porque transferir recursos pela forma de fundos, de sustentação ao capital, existe no Brasil já há um tempo. Mas isso foi muito sofisticado, mais complexificado. É esse momento da política social que o Brasil está exportando como referência.

Isso nasce no Brasil?

O Banco Mundial já sugeria isso como medida. Hayek e Friedman já diziam que para aquele que não pode pagar, o Estado não deve ter equipamentos públicos (escola, hospital, bibliotecas), mas sim transferir em dinheiro para que a pessoa possa escolher, exercendo a sua liberdade de comprador no mercado. Eles dizem isso lá na década de 1940. Só que isso não se transforma em política social porque é implementado o Welfare State, por todas as condições do pós-guerra que tornaram isso possível. Não é mais possível isso. Eu tenho absoluta convicção de que nós temos que continuar a lutar por políticas sociais no modo de produção capitalista, mas no estágio atual, é guerra: um Estado de Bem-Estar Social não é possível mais em lugar nenhum do mundo. Porque o fundo público que estaria alocado no Welfare State é absolutamente vital para o desenvolvimento do capitalismo.

Se não, ele colapsa. E aí são as políticas do Banco Mundial — especialmente os estudos desenvolvidos na segunda metade da década de 1980, mas essencialmente, nos anos 1990 — que começam a sugerir a política social como transferência de uma quantia monetarizada, em dinheiro, para os usuários, para aqueles que precisam da política social. E, embora existisse, na Bolívia e em alguns países da América do Sul e Central algumas iniciativas dessas, nunca tinha se tornado uma política de importância como se tornou sob Lula, no Brasil. Porque não é qualquer economia. A minha hipótese é que o Brasil é o padrão de referência mundial para esse novo tipo de política social, essa nova forma Estado. É por isso que eu chamo o que está ocorrendo na Europa de latinoamericanização da política social e da forma Estado. Eu estudava isso no Brasil, cheguei a Portugal — um país que teve uma revolução que, junto com a do Chile, foi a mais importante dos últimos 30 anos do século 20 —, e vejo que lá está acontecendo isso. Aí começo, na relação com os pesquisadores de Espanha e Itália, a ver que nesses países é a mesma coisa. Há pequenas diferenças de um país para o outro, mas a referência é Brasil. Claro que esses países não dizem que a referência é o Brasil, dizem que no Brasil vai tudo bem porque aqui não teve crise, foi um país que cresceu — e lá aplica-se essa política. Então, a latinoamericanização, claro, na América inteira está implementada. A novidade é lá, onde teve Welfare State. A latinoamericanização se dá nas políticas sociais, nas formas de redução dos direitos, na redução do contrato coletivo que garante direitos trabalhistas. E na dívida que passa a ser uma dívida pública, não uma dívida externa. Junto com essas modificações, tem o aumento da violência contra os pobres e os organizados. E a polícia lá, que não era violenta, começa a matar nos bairros sociais.

Temos assistido, na Grécia, por exemplo, a alguma reação da população, que pede um basta nessas medidas de austeridade. Como você tem visto essa reação na Europa?

Eu acho que, em dois países, Grécia e Espanha, há tentativas, mas eu não arriscaria dizer no que vai dar. O Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha são movimentos muito fortes e acho que tem uma coisa para os partidos da esquerda tradicional se indagarem porque esse crescimento se faz por fora deles, em ambos os países. Em Portugal os partidos da esquerda clássica, com a sua central sindical, tem por vezes, funcionado como um dique à reorganização dos trabalhadores, porque eles controlam muito a burocracia dos pequenos trabalhadores do Estado. O Syriza não é uma coisa única: há no seu interior, trotskistas e lutadores de correntes comunistas diversas, por exemplo. Ouvi e li um médico grego, um trotskista de uns 58, 60 anos, que contou como a organização dele que compõe o Syriza recuperou o trabalho de base na Grécia. Eu fico comovida com isso, porque o que eles fizeram foi o básico e pelo básico reconquistaram as pessoas para acreditarem que há um projeto possível de transformação da sociedade. O trabalho de base era o seguinte: eles formavam brigadas, iam para as feiras livres com carrinho e conversavam com os produtores médios que estavam nas feiras, explicando que havia naquele lugar não sei quantas pessoas passando fome.

Organizavam-se por regiões, começaram a visitar as pessoas que estavam no mais brutal sofrimento — com toda essa propaganda ideológica, a pessoa vai deprimindo, achando que ela é o problema: como o professor José Paulo Netto escreveu lindamente, é preciso culpabilizar as pessoas, para quebrar a estima de alguém para a luta, você tem que dizer que ela é uma nulidade, responsabilizá-la por sua triste situação de vida. Aquelas equipes, grupos, começaram a redistribuir cestas de alimentação que recolhiam nas feiras e levavam à casa das pessoas. Não tinha Estado, a família já não podia socorrer, não havia para onde correr. Mas quando uma pessoa passa a comer porque pessoas solidárias de uma organização levavam comida, isso não tem volta. Eles não estavam ali para pedir o voto, estavam organizando a base para ela lutar. Eles atuavam na alimentação, na saúde geral e na saúde mental. Porque o nível de depressão e suicídio era grande: em três anos, foram 6 mil suicídios. Pessoas que perderam o emprego, não tinham o que comer, não tinham mais energia em casa. Seis mil suicídios foram declarados como consequência da miséria e da desesperança na Grécia. Eles começaram a recrutar psicólogos militantes com empregos também ruins que começaram a ajudar na abordagem que eles iam fazer às pessoas.

Como era organizado por bairro, por rua, eu conheço quais são as pessoas que estão deprimidas, sofrendo, no meu prédio. Então, eu indico que ali tem gente e aí vêm as brigadas, os grupos organizados. Ele dizia assim: "tirar a pessoa do fundo escuro da sua própria alma, porque ela foi quebrada por uma crise econômica, é ganhar uma fidelidade que ninguém consegue destruir". Esse médico disse que trabalhava no seu emprego estatal, onde teve salário reduzido, e entrou nisso — na verdade, ele liderou uma dessas linhas. Iam para os lugares e começavam a atender as pessoas, como se fosse um médico de família, só que não era do Estado porque o Estado se reduziu tanto que não conseguia mais atender. Então, os médicos trabalhavam e continuavam a trabalhar depois do horário para atender essas pessoas que estavam doentes. Além do mais, é um país frio, que tem um inverno de cinco meses. Já pensou tomar banho, cozinhar, se não tem água? Não tem gás, não tem energia, não tem a dignidade de um banho. A primeira medida do Syriza depois de eleito foi religar a energia elétrica gratuita em 400 mil casas, perdoada a dívida. As pessoas vão ter acesso à energia sem pagar, porque não têm como pagar. Eu não conheço direito todas as forças internas ao Syriza, mas sei que tiveram correntes lá que trabalharam desse jeito. A próxima é a Espanha. O Podemos está com mais de 28% das intenções de voto. A burguesia na Espanha está enlouquecida porque a Espanha não é a Grécia, né? A Espanha tem um PIB muito importante dentro da União Europeia e tem classe trabalhadora organizada, sindicatos fortes, os operários da Galícia que marcharam sobre Madri. Ali a coisa pode ser um pouquinho mais animada. Eu não sei se é para ter esperanças, mas nesses dois países, as placas estão em movimento.

A origem da família, da propriedade privada e do Estado

Fonte:
// Jornal Correio do Brasil

Durante a barbárie, as noções iniciais do sentido de propriedade começaram a se formar

Friedrich Engels (1820-1895) nasceu em Barmen, Alemanha, filho de um bem sucedido industrial. Enviado pelo pai para aprender a gerenciar sua fábrica de algodão em Manchester, Inglaterra, o jovem Engels dedicou-se a investigar a situação dos operários e publicou, aos 23 anos, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, um dos primeiros estudos sobre as condições de exploração do proletariado. Após conhecer Karl Marx (1818-1883), une-se a ele numa fecunda amizade e parceria política e intelectual que perduraria até a morte de Marx. Um ano depois, Engels, a partir de algumas notas esparsas do seu recém falecido amigo sobre um livro do norte-americano Lewis Henry Morgan, desenvolveu a mais ambiciosa aplicação do materialismo histórico para a tentativa de compreensão do desenvolvimento das formas da família, da propriedade e do Estado desde a pré-história e, até mesmo, para esboçar as formas previstas de uma futura sociedade socialista.

Escrito em dois meses e publicado em alemão, em outubro de 1884, em Zurich, na Suiça, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, é uma das mais importantes reflexões teóricas do marxismo. Ela se destaca como um diálogo fecundo do materialismo histórico com a antropologia, especialmente com a investigação de Morgan. Esse campo do conhecimento estava em constituição ainda embrionária no século XIX, tanto no seu aspecto teórico mais geral como no sentido de uma etnografia extensa dos povos da terra. O pouco que se conhecia na época vinha especialmente dos estudos realizados nos Estados Unidos entre as populações indígenas, especialmente os iroqueses, que eram da região nordeste do continente, próximo do que é hoje Nova York. Lewis Morgan, que viveu muitos anos entre essas comunidades e publicou importantes livros[1], foi o principal inspirador de Engels na sua análise das formas históricas da "família" na humanidade.

As fases históricas
da humanidade

A periodização dos estágios de evolução das sociedades humanas em três fases: selvageria, barbárie e civilização, conforme a capacidade produtiva das "invenções e descobertas" e a localização histórica das formas correspondentes de agrupamento familiar humano e dos momentos de surgimento da propriedade privada e do Estado é uma das grandes contribuições de Morgan.

Para Engels, a obra de Morgan era tão importante como a de Darwin, pois ambas teriam desenvolvido uma visão análoga à do "materialismo histórico" dele e de Marx. Tal enfoque teórico analisa cada período histórico da humanidade como um processo de produção e reprodução da vida imediata, para a qual o desenvolvimento da capacidade do trabalho humano em interagir e transformar a natureza reflete-se nas técnicas de produção. Assim é o trabalho humano que constitui a humanidade não só do ponto de vista cultural, mas até mesmo anatomicamente, daí a famosa frase de Engels de que a mão humana é não apenas o orgão do trabalho, mas também o produto do trabalho. A mão, com a preensibilidade do polegar que permite a manipulação de instrumentos, o cérebro com áreas estimuladas pela necessidade de desenvolver habilidades como a linguagem e a traqueia capaz de emitir sons variados, são órgãos históricos, produtos do desenvolvimento coletivo da sociabilidade humana.

As fases de Morgan, denominadas, contudo, com uma terminologia questionável e típica da era vitoriana ("selvageria", "barbárie" e "civilização"), representam os estágios respectivos das formações sociais dos caçadores coletores, seguidos pelos agricultores e domesticadores de animais e, finalmente, pelos povos urbanos e de artesanato desenvolvido, inclusive dos metais. Sua sequência, em geral, corresponde aos estudos posteriores, mas, à luz da ciência contemporânea, há uma série de equívocos que Engels reproduz: o uso do fogo não é da fase média da selvageria, mas muito anterior, e não tem nenhuma relação direta ou "complementar" com o consumo de peixes. A fundição de ferro não é um marco entre as fases média e superior da barbárie. A domesticação dos animais no Oriente não antecede ao cultivo de plantas, mas é contemporâneo a ele. Considerar a civilização Inca como estando ainda na fase média da barbárie na época da Conquista tampouco é aceitável (John Rees, 1994; Gordon Childe, 1966). O esquema geral, contudo, demonstrou-se capaz de descrever os estágios fundamentais da evolução cultural humana, embora sua linearidade expresse um evolucionismo que não leva em conta os processos regressivos de sociedades que decaíram e desapareceram (p. ex., os Maias, a cultura micênica em Creta ou o povo da Ilha da Páscoa). De forma geral, os grandes períodos compreendidos nas "idades" respectivas da pedra lascada, da pedra polida, do bronze e do ferro, referem-se à "selvageria paleolítica", à "barbárie inferior neolítica", à "barbárie superior calcolítica" e ao surgimento das grandes civilizações da época final do bronze e inicial do ferro. V. Gordon Childe, o grande arqueólogo pré-histórico, cunhou os termos "revolução neolítica" para referir-se à passagem da selvageria à barbárie com o advento da agricultura, há cerca de 10 mil anos, e "revolução urbana" para situar o surgimento da civilização (palavra que se origina do termo latino civitas que significa justamente cidade), em torno de 3 mil anos antes de Cristo, que foi, segundo ele, a época mais fértil de toda a história humana, antes do século XVI, em invenções e descobertas úteis: fundição de cobre, bronze, arado, tração animal, carros com rodas, canais de irrigação, edifícios, barcos e, para contabilizar toda a nova riqueza, o alfabeto.

As origens da opressão da mulher
e da exploração do trabalho

A tese central de Engels é que, na passagem da selvageria para a barbárie, ao final do "comunismo primitivo", nascem conjuntamente a opressão de classe, com o surgimento da propriedade privada, inclusive de outros homens na forma de escravos, e a opressão feminina com a subordinação da mulher ao direito paterno para garantir a transmissão de sua linhagem e propriedade. Nesse sentido, ele afirma de forma lapidar, que "a derrota histórica do gênero feminino" ocorreu com o advento da propriedade privada. O surgimento de um excedente nas sociedades primitivas não só teria levado à sua apropriação desigual, como à uma desigualdade na relação entre os gêneros na partilha das tarefas da produção e reprodução da espécie, que passam a ficar separadas, cabendo à mulher quase exclusivamente as funções da criação dos filhos e da casa, cada vez mais afastadas da "indústria social". Enquanto entre os caçadores e coletores e mesmo no início da horticultura com estaca ou enxada, as mulheres viviam em condições igualitárias e eram as mais importantes fornecedoras de comida e criadoras dos artesanatos, com a expansão da agricultura extensiva e o surgimento de excedentes, sua condição social decaiu para um tipo de servidão. Essa tese, afirmando que a origem da opressão é cultural e pode vir a desaparecer no futuro, refuta as interpretações que buscam um fundamento biológico "natural" para a opressão feminina, como ocorria, por exemplo, no liberalismo preocupado com a questão da emancipação da mulher de Stuart Mill, que identificava a origem da opressão feminina na maior força física dos homens.

O livro de Engels representa um posicionamento político diante de todas as formas de opressão, que, para ele, possuem raízes comuns, chegando a dizer que "na família, o homem é o burguês e a mulher o proletário". Nesse sentido, dando continuidade a uma tradição que tem antecedentes no utopista francês Charles Fourier, ele participou da fundação das bases teóricas do feminismo político contemporâneo. A defesa não só da igualdade política, mas da conversão da economia doméstica num assunto público, com a reincorporação plena das mulheres na "indústria social" definiu um programa necessário para a emancipação feminina.

É preciso lembrar que, na época em que o livro foi escrito, não só as mulheres não tinham direito de voto, de divórcio, de autonomia de sua vontade diante do esposo, de uso de contraceptivos, como nem sequer tinham direito de participação política, mesmo no movimento operário, que majoritariamente se opunha ao trabalho feminino e à participação de mulheres em sindicatos e partidos, defendendo que o lugar da mulher era no lar. Assim escrevia Proudhon e dessa forma se manifestou o Congresso Sindical na Inglaterra em 1877, as mulheres não deviam trabalhar não só porque isso aumentava o desemprego e baixava os salários, mas porque era imoral: o lugar da mulher era na vida doméstica. A proposta do socialista Auguste Bebel de direitos iguais entre homens e mulheres no Congresso de Gotha, de unificação dos socialistas alemães num só partido, em 1875, foi rejeitada, sob o argumento de que as mulheres não estariam preparadas! Somente em 1891, o partido socialista alemão admitiu esse princípio, mas mesmo assim ainda demoraram anos e dependeu de intenso debate a filiação de mulheres no partido em igualdade de direitos com os homens (inicialmente elas não tinham direito à palavra e deviam se reunir separadas) (Andrea Nye, 1995). Mesmo o direito de voto feminino nunca foi muito popular entre o movimento operário, pois se acreditava que as mulheres tenderiam a ser mais conservadoras e votar nos candidatos apoiados pela Igreja. Nesse sentido, a defesa por Engels, da plena emancipação feminina, da igualdade dos gêneros e do direito (e necessidade para a sua libertação) de trabalhar e decidir por conta própria era uma posição revolucionária audaciosa mesmo entre os socialistas.

Outro posicionamento claro e desafiador de Engels era diante do conceito burguês de "civilização". Na época da expansão do colonialismo europeu sob o manto da "civilização" que iria levar a "modernização" para os "povos primitivos", cujo pacto de divisão da África acabava de ser selado no Congresso da , em 1881, Engels faz um elogio das liberdades da "comunidade primitiva" dos povos do estado selvagem e até mesmo do "caráter democrático original das organizações gentílicas" dos povos do estado da barbárie, que é "uma arma na mão dos oprimidos", perante o caráter "dúbio, ambíguo, equívoco, contraditório" de tudo que a civilização produz.

Sua verdadeira admiração pelos povos do comunismo primitivo revela-se, sobretudo, na sua afirmação de uma primitiva preponderância feminina na organização social. Tal época, é chamada alternativamente de "matriarcado" ou de "direito materno", quando a matrilinearidade, ou seja, o reconhecimento da filiação apenas da mãe, daria às mulheres um papel não apenas igualado mas superior ao dos homens. Embora o termo "matriarcado" possa ser incorretamente interpretado como o de uma época em que teriam existido sociedades estatais com supremacia feminina, o seu significado, em Engels, é de um tipo de sociedade que a pesquisa posterior comprovou existir onde ocorrem matrilinearidade (descendência materna) e matrilocalidade (residência do marido na casa da linhagem da esposa).

Nesse ponto, manifesta-se mais um aspecto da audácia teórica de Engels, inspirado nas obras de Morgan e Bachofen, ao negar a perpetuidade da "sagrada família" e do patriarcado. As relações sexuais são vistas no período mais remoto como expressão de um intercâmbio generalizado, que Bachofen tinha chamado de "heterismo". Um exemplo desse regime é registrado por um cronista jesuíta entre os índios do Canadá, no século XVIII, que ao tentar convencer um indígena a abdicar dessa "promiscuidade" em que sua esposa frequentava diversos outros homens, argumentou-lhe que ele assim não poderia nem sequer ter a certeza da paternidade sobre seus filhos, ao que o indígena respondeu que isso não lhe importava, pois se entre os brancos um homem ama apenas seus filhos, na sua tribo os homens amavam igualmente todas as crianças (Sharon Smith, 1997). Tais características da sexualidade indígena, que já haviam sido notadas pelos viajantes nos mares do sul e que, mais tarde, Malinovski e Margaret Mead vão estudar entre os trobriandeses, haviam seduzido a imaginação européia, mas, até as obras de Bachofen, Morgan e Engels, ninguém havia sugerido que elas seriam a praxe entre a humanidade pré-histórica. Essa idéia sofre, contudo, de um excessivo caráter especulativo, dado que abrange milhões de anos que não podem ser generalizados em uma única fórmula. Sabe-se por estudos zoológicos, que mesmo entre os primatas superiores existem uma ampla variedade de comportamentos e nenhuma regra estritamente definida.

Nessa época pré-histórica em que a vida sexual teria se caracterizado por uma "promiscuidade" generalizada, com famílias consanguíneas de grandes grupos, ocorreria, segundo Engels, apenas uma divisão por gerações no intercâmbio sexual. O tema fascinante da origem do tabu do incesto paterno ou materno praticamente não é abordado por Engels, exceto para afirmar que seria instintiva (p.46), opinião que depois será fortemente refutada por Freud, entre outros. O próprio Engels é contraditório com essa opinião, pois em outra passagem anterior, afirmou que o incesto é uma "invenção" (p.39). A tendência histórica de uma restrição cada vez maior no círculo de intercurso sexual até seu estreitamento na forma bipolar da monogamia é vista por Engels de uma forma cronologicamente quase linear. A explicação para esse fenômeno é esboçada numa passagem como sendo uma consequência da seleção natural (p.54), mas também parece contraditória com a noção do aprendizado cultural característico de cada época histórica, no interior das quais Engels encaixa um pouco esquematicamente as formas de família: "matrimônio por grupos" na "selvageria"; "família sindiásmica" (de casais) na "barbárie"; e "monogamia" na "civilização". Tal visão, constitui-se com dados empíricos extremamente limitados, o que leva à uma comparação problemática entre sociedades indígenas contemporâneas e sociedades pré-históricas desaparecidas, baseada apenas na semelhança de saberes e equipamentos culturais.

Da mesma forma, outras limitações levam Engels a idealizar a sexualidade humana tanto entre o proletariado contemporâneo de sua época (onde a prostituição e o adultério teriam um papel "quase nulo", em comparação com a burguesia), como entre a humanidade do futuro e a de todas as épocas, ao considerar a homossexualidade como "um vício antinatural". Sobre este tema, há três passagens do livro de Engels, na primeira ele considera que, entre os gregos, as "repugnantes práticas da pederastia" levaram-nos a se desonrarem a si próprios e aos seus deuses pelo mito de Ganimedes (que foi o único amor homoerótico de Zeus com um jovem mortal). Curiosamente, Engels não menciona Platão e seus diálogos sobre o amor homoerótico e o mito do andrógino original. Na segunda passagem, ele atribui o homossexualismo entre os germanos à sua "decadência moral" devido ao contato com os nômades do Mar Negro que, além da arte da equitação, ensinaram-lhes "feios vícios antinaturais". E, finalmente, na terceira menção, registra sem comentários, como se fosse algo natural, que a assembléia do povo entre os germanos só decretava pena de morte para "covardia, traição e vícios antinaturais". O movimento socialista e progressista teria ainda de esperar o século XX e figuras como o alemão Magnus Hirschfeld para que os direitos dos homossexuais se tornassem uma reivindicação política.

A monogamia e a família burguesa, ideais morais solenes, hipócritas e praticamente consensuais em sua época são criticadas veementemente por Engels, como uma "escravização de um sexo pelo outro". Seus complementos necessários seriam o adultério e a prostituição. Diante da vigência de um puritanismo de fachada extremamente severo na sociedade vitoriana do final do século XIX, foi uma grande coragem de Engels expor de forma tão explícita o significado dos chamados "valores familiares burgueses" [2].

A visão histórica de Engels da prostituição, entretanto, é muito questionável, pois ele a relaciona com uma fase de transição entre o casamento por grupos e a restrição da disponibilidade feminina, que conquistaria o "direito à castidade", mas para isso, teria passado por um ritual de expiação, de sacrifício, na forma da "prostituição sagrada" nos templos da Babilônia ou de jus prima noctis (direito à primeira noite) em inúmeras sociedades, ou seja, mistura fenômenos muito diversos atribuindo-lhes um significado comum. Historiadores contemporâneos mostraram como o termo "prostituta", na época moderna, foi usado pela medicina e pela Igreja para estigmatizar as mulheres que buscassem prazer sexual, mesmo que no interior do casamento ( Magali Engel, 1989; Jean-Louis Flandrin, 1988).

Outras passagens de Engels, como a ideia que haveria uma tendência "instintiva" de se limitar o incesto (p.46), de que a poliandria não existe entre os animais (p.49), de que a poligamia e a poliandria são exceções, "artigos de luxo" como ele escreve, entre as sociedades humanas (p.60), também são totalmente questionáveis à luz da pesquisa histórica e antropológica posteriores.

Na idealização do futuro, Engels também se mostra pouco imaginativo, pois curiosamente não vislumbra nada além de uma "realização plena da monogamia", pois considera que "o amor sexual é, por sua própria natureza, exclusivista" e a igualdade influirá mais em tornar os homens monógamos do que as mulheres poliândricas. Essa passagem, como apontam teóricas feministas socialistas (Sharon Smith, 1997), partilha da ideologia de que os homens são "naturalmente" inclinados para desejar muitas parceiras enquanto a biologia das mulheres tenderia a incliná-las para desejar apena um. Em outra passagem, entretanto, o próprio Engels adverte de que não é possível imaginar como será a vida sexual das gerações futuras quando não houver mais a alienação social e as relações intermediadas pela mercadoria. A incorporação das mulheres às fileiras do proletariado no século XX foi mais intensa do que Engels podia prever. As alterações na sexualidade contemporânea com a emergência de formas familiares "alternativas", de métodos de contracepção e aborto, assim como de fertilização in vitro, "barrigas de aluguel" e até mesmo alteração de sexo por meio de hormônios e cirurgia apontam uma complexidade muito maior no futuro das transformações das relações amorosas e da reprodução humana.

O tema do "amor livre", que Charles Fourier havia chegado a propor, não se encontra em Engels, surgindo apenas mais tarde em autoras socialistas e anarquistas como Alexandra Kollontai e Emma Goldman. Lênin em polêmica com Clara Zetkin vai condenar essas idéias e práticas como desviantes da energia revolucionária, especialmente da juventude, dando margem para que um autor como Eric Hobsbawm (2003) chegue a formular a tese de que as revoluções sempre são intrinsecamente puritanas, confundindo as determinações dos seus ideólogos ou dirigentes com as energias reais de mudanças na vida cotidiana despertadas no comportamento das massas.

Na história posterior do movimento socialista internacional, a obra de Engels foi inspiração para diversos outros trabalhos[3] e, mais recentemente, voltou a ser objeto de controvérsia, na época do surgimento do movimento feminista de massas dos anos 60, quando três temas em particular, foram foco de um debate ainda inconcluso: a natureza econômica do trabalho doméstico, a existência de um modo de "reprodução" ao lado do modo de produção e a existência de outros fundamentos históricos ideológicos, não necessariamente econômicos, para a dominação masculina[4].

As sociedades arcaicas e
os diversos modos de produção

Afirmar que a família, as classes e o Estado não eram eternos e que deveriam sofrer mudanças revolucionárias foi o significado mais abrangente da obra de Engels, questionando a perpetuidade das entidades abstratas do patriotismo burguês e da família patriarcal como mera ideologia metafísica que a dialética materialista permite situar em seu lugar histórico transitório. As tendências humanas à competição e à desigualdade não existiram sempre nem seriam características instintivas de uma pretensa "natureza humana" abstrata, como afirma o pensamento liberal formulado por Hobbes e outros, mas, pelo contrário, surgiram historicamente com a propriedade privada, as classes e o Estado, e foram antecedidas por milhões de anos de desenvolvimento de sociedades de caçadores coletores marcadas pelo igualitarismo, a partilha, a reciprocidade e a comunidade que, apesar de sua carência relativa (o antropólogo Marshal Sahlins chamou-as de "sociedades afluentes"), nos mostram um passado humano construído na vida coletiva da colaboração mútua através do trabalho de todos em prol da comunidade. Como escreve Hobsbawm (1975, p.51), "que o comunismo seria uma recriação, em mais alto nível, das virtudes sociais do comunalismo primitivo, é uma ideia que pertence à mais precoce herança do socialismo". Comentando que nenhuma sociedade antiga tinha na riqueza em si o objetivo da produção, Marx afirmou (Formações econômicas pré-capitalistas, p. 80) que: "a antiga concepção segundo a qual o homem sempre aparece como o objetivo da produção parece muito mais elevada do que a do mundo moderno, na qual a produção é o objetivo do homem, e a riqueza o objetivo da produção" e, numa carta a Engels de 25 de março de 1868, comenta que, ao olhar para a era primitiva de cada nação, encontram-se correspondências com a tendência socialista, o que levaria, mesmo os mais eruditos, a se surpreenderem ao "descobrir o que é o mais novo no que é o mais velho" (idem, p.130).

A opressão feminina foi identificada por Engels como concomitante ao surgimento das classes sociais e da propriedade, encerrando uma longa e arcaica fase de propriedade comunal e iniciando uma série de modos de produção baseados na divisão social e apropriação desigual do produto social.

Sobre este tema, desenvolveu-se uma imensa discussão a respeito dos diversos modos de produção. A própria definição teórica do que é um modo de produção e como ele se articula com as formações econômico-sociais concretas e todas as suas formas políticas, ideológicas, religiosas, etc., é um tema controverso que não possui uma formulação simples nem acabada na obra de Marx e Engels.

Modos de produção são um modelo teórico, cuja concretude depende das especificidades particulares de cada região e povo em questão. A visão mais comum, interpretada da obra de Marx e Engels, identifica a existência depois do comunalismo primitivo de outros quatro modos de produção posteriores: o asiático, o antigo, o feudal e o capitalista, conforme são relacionados no Prefácio da Crítica da Economia Política. Em outras passagens, Marx menciona o germânico e o eslavônico como alternativas também possíveis da evolução da propriedade comunal.

Nenhum desses modos de produção é nem absoluto nem homogêneo, é apenas o modo dominante em mistura com diversos híbridos e resquícios vários. O asiático, com uma definição pouco aprofundada[5], foi definido por Marx como sendo aquele característico de sociedades em que existia um Estado centralizado, encarregado de grandes obras públicas, mas não existe propriedade privada da terra (como seria o caso da Índia e, especialmente, da China antigas). O feudal seria uma derivação da mistura do modo de produção antigo, caracterizado pelo uso extenso de escravos, portanto também chamado de escravista, com o modo germânico. Isso significa que não há, em Marx, qualquer unilinearidade sucessiva entre um modo de produção e outro, eles não constituem etapas necessárias de todas as sociedades mas formas concretas e singulares que ocorreram especialmente na formação euroasiática.

Algo muito diferente ocorreu com a interpretação unilinear, etapista e dogmática que prevaleceu após a degeneração stalinista da URSS. A aplicação concreta dos modos de produção à diversas sociedades históricas foi objeto de uma intensa manipulação política da teoria. O modo de produção asiático passou a ser combatido em meados dos anos de 1920, pois Trotsky e outros, discordavam da caracterização da China como feudalismo, adotada pela III Internacional para justificar sua proposta de aliança com a burguesia nacional para a realização de uma revolução democrático-burguesa, etapa vista como necessária naquele país, assim como em outros países atrasados como, por exemplo, o Brasil.

Essa categoria teórica buscava explicar sociedades agrárias sem propriedade privada do solo, mas com um Estado despótico e burocrático. Tais sociedades não teriam sido apenas da região asiática (por isso o conceito não é geograficamente determinado), mas incluiriam, por exemplo, e dependendo do autor, sociedades como o Egito, o México e Peru pré-colombianos ou até mesmo a própria Rússia czarista.

Foi exatamente essa última aplicação do conceito que levou Stálin a condená-lo pois descrevia um tipo de sociedade burocrática, sem propriedade privada mas com um Estado forte que poderia ser identificada na sociedade soviética. O Origem da Família…, de Engels, assim como o Manifesto Comunista, por não incluirem referência explícita ao modo de produção asiático foram usados como argumento para negar a sua validade. Mais tarde, nos anos 60, quando da ruptura soviética com a China, passou a se reestudar essa categoria na academia soviética, para utilizá-la exatamente para a descrição da China antiga (e para os que quisessem ler nas entrelinhas também a China maoísta). Os próprios chineses nunca aceitaram essa definição para o seu país adotando a caracterização oficial de "feudalismo" para o que existia na China antes da chegada do capitalismo ocidental (vide G. Sofri, 1969). Esse uso excessivamente abrangente de feudalismo, um conceito impróprio desde a origem, pois remete a uma forma política de vassalagem e não a uma relação econômica, tornou-o uma espécie de generalização fácil para toda sociedade "atrasada" em que existia uma propriedade senhorial da terra.

O livro de Engels não aprofunda a relação dos modos de produção com a história das formas de propriedade, tratando da organização gentílica antiga, especialmente da grega, romana e germânica, mas não abordando as sociedades asiáticas. Este debate prosseguiu tanto entre os próprio Marx e Engels como em toda discussão teórica posterior[6].

A natureza e as formas do Estado

A influência maior do livro de Engels sobre a história do movimento operário internacional e sobre a teoria revolucionária talvez não tenha sido, entretanto, as partes que tratam da origem da família e da propriedade, mas a que trata do Estado, não tanto em sua origem, mas em suas características na época contemporânea. Este último nasceria como expressão do surgimento do antagonismo social com a acumulação de riqueza e propriedade privada, especialmente de escravos. Como diz Engels, a propensão para a troca leva o próprio homem a ser trocado como uma das principais mercadorias (a importância dos escravos nas primeiras sociedades divididas em classes foi, no entanto minimizada posteriormente, no que se refere aos estudos sobre a Mesopotâmia).

A relação do Estado com as classes dominantes e a caracterização dos Estados específicos em diferentes épocas e regiões tornou-se um elemento central na análise das formações sociais e econômicas. Os Estados garantem a repressão e a exploração, ou seja, cumprem o papel de produzir e reproduzir as condições sociais existentes para manter o domínio das classes dominantes. Em sua origem, o Estado constitui-se a partir de um território sobre o qual exercerá sua soberania através de uma força militar que se torna independente do conjunto do povo armado, ocupando o lugar de uma força coercitiva externa aos cidadãos (na Grécia antiga, por exemplo, a polícia foi formada de escravos, pois nenhum cidadão se dispunha a cumprir um papel tão odioso como o de ser uma tropa repressiva). E, finalmente, para exercer tais funções o Estado necessita arrecadar tributo e formar uma camada administrativa, a burocracia, que também irá assumir a característica de uma camada externa e superior ao conjunto da população de um território.

As formas do Estado têm relação com as formas de produção e apropriação, ou seja, com os modos de produção, e as classes dominantes e suas facções lutam pelo seu predomínio, reagindo, sobretudo, à ameaça potencial ou presente da ação das classes dominadas e exploradas.

Uma frase de Engels sobre o período de transição do feudalismo ao capitalismo tornou-se, porém, objeto de grande debate ao afirmar que: "há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII" (p. 162). Naquele que ficou conhecido como "o debate da transição do feudalismo ao capitalismo", e que contou com diversos protagonistas (desde a obra de Christopher Hill, A revolução inglesa, publicada em 1940, no seu tricentenário, até as contribuições de Maurice Dobb, Paul Sweezy e outros, nos anos de 1950), estas passagens de Engels foram objeto de grande discussão. Perry Anderson (1989) considera que esta, assim como outras passagens de Engels e Marx, revelam uma noção incorreta da natureza do Estado Absolutista moderno que poderia ser visto, nessa situação de "equilíbrio", como já sendo um Estado Burguês, o que para Anderson é um contrasenso, pois tais estados não seriam mais do que uma "nova carapaça política de uma nobreza atemorizada", que só foi derrubada efetivamente do poder com as revoluções burguesas na Inglaterra no século XVII e na França no XVIII. Essa análise de Anderson foi parte do que ele próprio chamou de "consenso de uma geração de historiadores marxistas" e foi resumida, entre outros, também por Christopher Hill.

Outra passagem de Engels, na mesma página, refere-se ao fenômeno do bonapartismo ou bismarckismo também como uma forma de composição de frações de classe no seio do Estado: "de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com o proletariado contra a burguesia e com esta contra aqueles. O mais recente caso dessa espécie, em que opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o do novo imperio alemão da nação bismarckiana; aqui capitalistas e trabalhadores são postos na balança uns contra os outros e são igualmente ludibriados para proveito exclusivo dos junkers (nobreza latifundiária) prussianos", o que mostra que os Estados não são simples reflexos mecânicos e automáticos das classes nem são "cascas vazias" a serem preenchidas por diferentes classes e suas frações. O Estado estabelece sua dominação por meios de pura coerção, mas também necessita do consentimento, o que exige a construção do que Antonio Gramsci veio a chamar de "hegemonia", o que pressupõe que as classes oprimidas são manipuladas e levadas a acreditarem que a fração hegemônica da classe dominante representa um suposto interesse geral da sociedade.

Os regimes políticos na época de Engels não apenas ainda reuniam monarquias autocráticas como, mesmo nas "repúblicas democráticas", ainda tinham inúmeros mecanismos de restrição às liberdades e aos direitos políticos, concedidos ainda de forma censitária (de acordo com a propriedade), além de, obviamente, restringirem totalmente as mulheres (não havia sequer voto feminino, conquista do século XX). Por outro lado, em muitos países nem sequer havia eleições ou parlamentos (na Rússia, p. ex.), a terra ainda estava sujeita a direitos de propriedade de origem feudal e as nacionalidades oprimidas não tinham direitos de expressão. Por isso, Engels considera que, dentro do capitalismo, a "república democrática" é a "mais elevada das formas de Estado, e que, em nossas atuais condições sociais, vai aparecendo como uma necessidade cada vez mais ineludível, e é a única forma de Estado sob a qual pode ser travada a última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia" (p.162). É através do sufrágio universal que a burguesia melhor pode dominar, realizando a "aliança do governo com a Bolsa", mas através dele se demonstra um "índice de amadurecimento da classe operária". E Engels, acrescenta que "no Estado atual não pode, nem poderá jamais ir além disso; mas é suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão – tanto quanto os capitalistas – o que lhes cabe fazer".

Lênin, em 1917, em O Estado e a revolução, desenvolveu as idéias de Engels sobre o Estado, afirmando que: "nós somos pela república democrática enquanto melhor forma de Estado para o proletariado no regime capitalista; mas não temos o direito de esquecer que a escravidão assalariada é o quinhão do povo, mesmo na mais democrática república burguesa. Portanto, todo Estado é um 'poder especial de repressão' dirigido contra a classe oprimida" (p.38). Mais à frente, escreve que "desenvolver a democracia até o fim; procurar as formas desse desenvolvimento, submetê-lo à prova da prática, etc., nisto consiste uma das tarefas essenciais da luta pela revolução social" (p.101). Esse desenvolvimento da democracia "até o fim" significa que, na perspectiva do socialismo, após a fase transicional, todos os tipos de Estado e todos os regimes de governo (inclusive os das repúblicas democráticas burguesas) deixarão de existir, pois deixará de existir a coerção social e, portanto, a necessidade de um aparelho militar e burocrático externo à própria comunidade. Para se chegar ao comunismo, será indispensável, portanto, a extinção do Estado. Como escreveu Engels: "no dia em que for possível falar de liberdade, o Estado deixa de existir como tal" e propõe, consequentemente, que, nestas circunstâncias, se substitua a palavra Estado pela palavra "comunidade" (Apud Lênin, p.87).

Como promover a realização de um programa democrático radical, que inclua as questões sociais, políticas e nacionais, tais como a reforma agrária, as liberdades públicas, a autonomia das nacionalidades a Assembléia Constituinte, entre outras, sem fazer delas um fim em si, mas buscando por meio delas o aprofundamento da luta de classes e da consciência organizada do proletariado enquanto classe, foi, talvez, o maior desafio teórico e da tática revolucionária no século XX, em que os marxistas estiveram sempre diante do duplo perigo da capitulação à democracia burguesa, como ocorreu com a maioria da social-democracia, ou do ultra-esquerdismo, que Lênin denominou de "cretinismo anti-parlamentar", típico de anarquistas ou de correntes sectárias como a do italiano Bordiga, na década de 1920, por exemplo.

Numa época de retrocesso do movimento dos trabalhadores, como a que Engels vivia (após a derrota da Comuna de Paris, em 1871, apenas em 1905 ocorreu uma nova revolução na Europa), os processos eleitorais eram considerados por ele como importantes trincheiras para o proletariado, mas nos momentos de aumento da luta de classes, para a qual as eleições são um termômetro, os trabalhadores precisariam estar preparados para conduzir um processo revolucionário, pois as classes capitalistas saberão perfeitamente que chegou a hora de conduzir a contra-revolução.

Essa passagem foi apropriada pela social-democracia alemã, especialmente por Karl Kautsky, como um argumento para a teoria do reformismo clássico, de que a inevitabilidade histórica do socialismo era governada por uma causalidade objetiva, o que levava ao abandono da noção de que a atividade auto-consciente e voluntarista do proletariado assume o papel decisivo na transformação revolucionária e à aceitação de uma ação insurrecional do proletariado apenas na hipótese da defesa de uma maioria parlamentar socialista ameaçada pela reação burguesa. Engels, ao contrário da visão social-democrata determinista, nunca abandonou a defesa da ação revolucionária como forma indispensável para a superação da ordem capitalista, tendo inclusive participado pessoalmente, de revólver à mão, nas barricadas da revolução de 1848, na Alemanha. O evolucionismo que, posteriormente, marcou a evolução da corrente social-democrata no seio da II Internacional, não pode ser atribuído à obra e à atividade prática de Engels. Em sua concepção teórica do Estado e em sua prática de militante revolucionário ele nunca transigiu com a denúncia integral do caráter burguês das repúblicas democráticas de sua época e sempre vislumbrou nos moldes da democracia comunitária direta em suas manifestações históricas, uma inspiração para uma nova sociedade socialista em que, após a revolução proletária, o Estado tenderia a desaparecer. Sem partilhar das ilusões românticas dos populistas russos com a propriedade comunal da terra viu nela, assim como Marx, um magnífico ponto de partida para a construção do socialismo desde que este estivesse enraizado na classe operária de um país desenvolvido.

A Origem da família, da propriedade privada e do Estado é um livro rico de idéias teóricas e de consequências políticas práticas. Não se trata de uma obra meramente acadêmica, em que a teoria ocupa um lugar confortável de pretensa reflexão científica pura e neutra, ao contrário, faz parte da concepção de que a ciência e a filosofia devem servir à ação humana, pois a humanidade "se faz a si mesma"[7] e, portanto, não há na história nenhum determinismo objetivo independente da ação dos homens e das classes em luta.

Henrique Carneiro é historiador, bacharel, mestre e doutor em História Social pela USP. Professor na cadeira de História Moderna no Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo).

POLÍTICA EXTERNA - "Ativa e altiva"


Escrito por: Redação
Fonte: Barão de Itararé

Apontado por parte da esquerda brasileira como o responsável por uma verdadeira 'revolução' na diplomacia do país, Celso Amorim opina sobre os grandes meios de comunicação

Em palestra na noite desta quarta-feira (27), no centro de São Paulo, o ex-chanceler Celso Amorim fez um breve retrospecto de quando esteve à frente do Itamaraty e, mesmo em tom ameno, não poupou críticas à postura da mídia no período. "Quando um jornal inglês me chamou de 'o melhor diplomata do mundo', em referência a conquista brasileira em sediar a Olimpíada de 2016, um jornalista brasileiro me perguntou a razão do elogio", relembra. "E eu respondi que era, provavelmente, porque eles não liam a mídia brasileira".

 

O bate-papo, que ocorreu no Sindicato dos Jornalistas, promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé com o apoio do GRRI – Grupo de Reflexão em Relações Internacionais, também marcou o lançamento do novo livro de Amorim: Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva (editora Benvirá). A obra compila relatos, com riqueza de detalhes e bastidores, de importantes episódios diplomáticos vividos pelo então ministro das Relações Exteriores, durante a era Lula.

 

"Não me proponho a fazer nenhum tipo de ensaio sociológico sobre a mídia, mas ela é, sem dúvidas, uma das principais personagens desse novo livro – e de meus anteriores também", pontua. "São coletâneas de crônicas das experiências que vivi. O livro é feito de notas que eu tomei ao longo desses episódios, coisa que eu fazia muito desde antes de Lula me anunciar como ministro".

 

Apontado por parte da esquerda brasileira como o responsável por uma verdadeira 'revolução' na diplomacia do país, Amorim opina que os grandes meios de comunicação, atrelados ao poder econômico internacional, incomodavam-se bastante com essa postura 'ativa e altiva' – definição que, segundo ele, surgiu no momento de seu anúncio como ministro, por Lula.

 

Foto: Felipe Bianchi/Barão de ItararéFoto: Felipe Bianchi/Barão de Itararé"Não que nunca tivemos momentos positivos, mas havia sempre uma preocupação de o Brasil não aparecer demais. A instrução era para evitar atitudes de protagonismo e eu não via razão alguma nisso", diz. "Se fossem assuntos de interesse nacional, por que não? Claro que tem de ser cauteloso na diplomacia, mas não se pode ver assombração a todo momento e, por isso, não levantar a sua voz. Tínhamos que estar presentes não apenas para responder à agenda do mundo, mas para fazê-la".

 

Em relação ao livro, Amorim retoma a crítica à mídia. "A obra trata de três processos diplomáticos que evidenciam essa nossa ideia de política externa ativa e altiva", explica. "Achei importante restabelecer os fatos tais como haviam ocorrido, pois a ignorância sobre eles era muito grande. Fui a lugares que obviamente deveria haver algum conhecimento sobre os temas e, pior que desconhecerem, as pessoas abraçavam a versão enviesada da imprensa de que o Brasil teria feito acordos obedecendo, temerariamente, a outros interesses e contra os Estados Unidos".

 

O título da obra faz referência a três cidades emblemáticas. Capital do Irã, a cidade de Teerã remonta à viagem de Lula, Amorim e outros diplomatas, ao lado de líderes turcos, para uma tentativa de acordo na questão nuclear, solicitada pelo então recém-eleito presidente Barack Obama. Com a ausência do líder máximo estadunidense, vetado por motivos desconhecidos, o Brasil teria ficado sem sustenação, segundo a imprensa brasileira, que tratou o episódio como uma gafe. Entretanto, a reaproximação entre Irã e Estados Unidos acontece justamente a partir dos termos de acordo firmados pelos representantes brasileiros. Ramalá, embora pequena, remete à virtual capital do território palestino, distando a apenas 15km de Jerusalém. Doha, por fim, faz referência à tentativa de uma negociação global, na Organização Mundial do Comércio (OMC).

 

"Dávamos importância para o universalismo", salienta Amorim. "Abrimos embaixadas na Coréia da Norte e no Irã, por exemplo. Depois de fazer um grande rebuliço, a mídia viu que também havia embaixadas de outros grandes países nesses lugares", acrescenta, aos risos.

 

Com auditório lotado e cerca de 5 mil internautas acompanhando a transmissão da palestra em tempo real, feita pela TVT, Celso Amorim entrou em detalhes de diversos acontecimentos descritos no livro, como a espinhosa negociação – intermediada, principalmente, pelo Brasil – entre Irã e Estados Unidos sobre a questão do urânio enriquecido. "À época, em um encontro de Barack Obama e Lula na Itália, o mandatário estadunidense elogiou o Brasil como 'exemplo de país com energia nuclear para fins pacíficos' e disse ao presidente brasileiro: 'Preciso de amigos que falem com aqueles que eu não posso falar'".

 

Ilustrando o protagonismo pretendido pela diplomacia brasileira, Amorim resgatou outro fato, dessa vez envolvendo a então secretária de Estado dos Estados Unidos. "Era manhã, eu ainda não havia saído de casa e recebo a mensagem de que Hillary Clinton precisava falar comigo 'agora, daqui uma hora ou quando eu pudesse'", recorda. "Eles precisavam saber o quê e como deveriam dizer em tratativas com a Turquia".

 

De volta ao tema Irã x EUA, Amorim lamenta o desfecho da negociação. "O que posso dizer é que, se tivesse sido aceito o acordo que arranjamos àquela época, teríamos poupados o povo iraniano de quatro anos de sanções e deixado o cenário muito melhor. Eles tinham 2 mil quilos de urânio enriquecido, hoje tem 10 mil e não se sabe como resolver", avalia. "Podemos especular que tenha sido por divergências na Casa Branca, pelo calendário eleitoral estadunidense e, até mesmo, uma forma de boicote à participação de países em desenvolvimento nos assuntos da alta cúpula do Conselho de Segurança, historicamente dominado por países mais poderosos".

 

Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva também trata da aproximação do Brasil com os países árabes, que culminou em diversas ações como o reconhecimento do Estado da Palestina, o envio de ajuda humanitária a Gaza e a retirada de 3 mil brasileiros de um Líbano beligerante. "Nessas épocas todas, a mídia falava: 'o que o Brasil tem a ver com isso? Por que vai se meter?'. Acabei de voltar de uma escola de governo em Harvard, nos Estados Unidos, e ouvi, de mais de uma pessoa, o comentário de que o Brasil pode e deve se envolver ainda mais", salienta. "Não nos obcecamos com nossos objetivos só preocupados em afirmar a nossa liderança. Fizemos concessões a países pequenos e mais pobres. Isso resume as nossas ações".

Descoberto mais um poço na área do Pré-sal

A perfuração do segundo poço na área de Carcará, localizado em águas ultraprofundas do Pré-sal da Bacia de Santos, confirmou o potencial de petróleo leve na região. A informação foi divulgada nesta sexta-feira (29) pela Petrobras, que vem conseguindo resultados cada vez melhores na área do Pré-Sal.
No dia 11 de abril, a Petrobras bateu a produção recorde 802 mil barris diários no Pré-sal. A média mensal de abril ficou em 715 mil barris. A empresa tem conseguido ainda baixar os custos de produção, tornando o Pré-sal viável a um preço de US$ 9 por barril. Anteriormente, a estimativa era de US$ 40.
O novo poço, informalmente conhecido como Carcará Norte, está localizado a 4,6 quilômetros ao norte do poço inicial, em profundidade de água de 2.072 metros. Este poço comprovou a descoberta de petróleo de boa qualidade, em reservatórios também de excelente qualidade, abaixo da camada de sal.
Nessa área, a Petrobras é operadora do consórcio (66%), em parceria com a Petrogal Brasil (14%), Barra Energia do Brasil Petróleo e Gás (10%) e Queiroz Galvão Exploração e Produção S.A. (10%).

Fonte: Portal Brasil.
Blog da Dilma no Facebook: https://www.facebook.com/BlogDilmaRousseff

A nova disputa pelo Pré-Sal.

Fonte: Blog do autor Autor: Mauro Santayana

> Os jornais voltam a anunciar que se discute, dentro e fora do governo, o fim da atuação da Petrobras como operadora exclusiva do pré-sal, com fatia mínima de 30%.
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> Alegam, entre outras coisas, seus adversários que seria inviável para a Petrobras continuar a explorar o petróleo do pré-sal com a baixa cotação atual do barril no mercado global, quando a produção oriunda dessa área cresceu 70% em março e se aproxima de 500 mil barris por dia.
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> Ora, se a Petrobras, que acaba de ganhar (pela terceira vez) o maior prêmio da indústria internacional de exploração de petróleo em águas marinhas, o OTC Distinguished Achievement Award for Companies, Organizations and Institutions, nos EUA, justamente pelo desenvolvimento de tecnologia própria para a extração do óleo do pré-sal em condições extremas de profundidade e pressão, estaria tendo prejuízo na exploração desse óleo, porque as empresas estrangeiras, a quem se quer entregar o negócio, conseguiriam ter lucro como operadoras, se não dispõem da mesma tecnologia?
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> Se a Petrobras explora petróleo até nos Estados Unidos, em campos como Cascade, Chinook e Hadrian South, onde acaba de descobrir reservas de 700 milhões de barris, em águas territoriais norte-americanas do Golfo do México, porque tem competência para fazer isso, qual é a lógica de abandonar a operação do pré-sal em seu próprio país, onde pode gerar mais empregos e renda com a contratação de serviços e produtos locais, e o petróleo é de melhor qualidade?
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> A falta de sustentação dessa tese não consegue ocultar seus principais objetivos. Se quer aproveitar uma "crise" da qual a empresa sairá em poucos meses (as ações com direito a voto já se valorizaram 60% desde janeiro; o balanço foi apresentado com enormes provisões para perdas por desvios de R$ 6 bilhões, que delatores "premiados", cuja palavra foi considerada sagrada em outros casos, já negaram que tenham ocorrido; a produção e as vendas estão em franco crescimento) para fazer com que o país recue no regime de partilha de produção, de conteúdo nacional mínimo, e na presença de uma empresa nacional na operação de todos os poços, para promover a entrega da maior reserva de petróleo descoberta neste século para empresas ocidentais, como a Exxon, por exemplo, que acaba de perder, justamente para a Petrobras, o título de maior produtora de petróleo do mundo de capital aberto.
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> Como ocorreu na década de 1990, cria-se um clima de terror para promover a entrega de uma das últimas empresas sob controle nacional ao estrangeiro.
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> Enquanto isso não for possível, procura-se diminuir sua dimensão e importância, impedindo sua operação na exploração de reservas que são suas, por direito, situadas em uma área que ela descobriu, sozinha, graças ao desenvolvimento de tecnologia própria e inédita e à capacidade de realização da nossa gente.

“Coronel Redl”, de István Szabó, 1985

  “Coronel Redl”, de István Szabó, 1985 – Império Austro-húngaro, final do século XIX, início do século XX. Um menino de origem humilde, Alf...