quinta-feira, 22 de maio de 2025

O Superávit que Vira Dívida: Contradições das Transações Correntes no Brasil

Por Walter Azevedo

Durante os últimos 25 anos, o Brasil acumulou uma contradição estrutural em sua economia externa: mesmo apresentando superávits comerciais em boa parte do período, viu-se aprisionado em déficits quase permanentes nas transações correntes. Em outras palavras: vendemos mais do que compramos, mas ainda assim "devemos". Como explicar essa aparente incoerência?

O que se revela como paradoxo é, na verdade, a expressão concreta da lógica do capital dependente. A aparência — a de uma economia "forte exportadora" — esconde a essência: um país funcionalmente subordinado na divisão internacional do trabalho e do capital, onde os excedentes gerados pelo comércio exterior são transferidos sistematicamente para o capital internacional via juros, lucros, royalties, serviços e pela própria exportação de capitais.



A estrutura montada no Brasil por sua classe dominante capitalista, subordinada e dependente ao capital do centro do sistema, fez do país uma “vaca leiteira” financeirizada, onde vários mecanismos operam para gerar valor ou riqueza pela estrutura econômica e social, especificadamente pelo trabalho do brasileiro. Este valor é apropriado e enviado para o exterior, seja pelas multinacionais, seja pelos próprios empresários brasileiros que preferem acumular capital fora do país ao invés de reinvestir no Brasil.

Abaixo uma tabela com os dados de Saldo Comercial (exportações e importações) e o Saldo de Transações Correntes (entrada e saída de capitais), para os últimos 25 anos:

 

Ano

Exportações
(US$ bi)

Importações
(US$ bi)

Saldo Comercial
(US$ bi)

Entradas de Capitais
(US$ bi)

Saídas de Capitais
(US$ bi)

Saldo Transações Correntes
(US$ bi)

2000

55,1

55,8

-0,7

32,8

57

-24,2

2001

58,2

55,6

2,7

28,5

51,7

-23,2

2002

60,4

47,2

13,1

20,2

27,8

-7,6

2003

73,1

48,3

24,8

16,6

12,4

4,2

2004

96,5

62,8

33,6

33,4

21,7

11,7

2005

118,3

73,5

44,8

30,2

16,2

14

2006

137,5

91,4

46,1

36

22,4

13,6

2007

160,6

120,6

40

92

90,4

1,6

2008

197,9

173,2

24,7

99

127,2

-28,2

2009

153

127,6

25,3

47,5

71,8

-24,3

2010

201,9

181,6

20,3

99,8

147,1

-47,3

2011

256

226,3

29,8

122,3

174,8

-52,5

2012

242,5

223,1

19,3

112,6

166,8

-54,2

2013

242,2

239,6

2,6

118

193,9

-75,9

2014

225,1

229,1

-4

112

216,2

-104,2

2015

191,1

171,5

19,7

75,4

134,3

-58,9

2016

185,2

137,6

47,7

78,2

101,7

-23,5

2017

217,7

150,7

67

97

112

-15

2018

239,9

181,2

58,7

88,3

129,8

-41,5

2019

225,4

177,3

48

75,4

126,1

-50,7

2020

156,5

114,3

42,2

65,4

89,9

-24,5

2021

280,4

219,4

61

70

98,1

-28,1

2022

334,5

272,7

61,8

80

125

-45

2023

334,5

235,7

98,8

85

134,4

-49,4

2024

329,3

258,1

71,2

90

142,4

-52,4

Somatório

4772,8

3874,2

898,5

1805,6

2591,1

-785,5



Elaboração do autor

Fontes:

·         Balança Comercial: Ministério da Economia.

·         Saldo em Transações Correntes: Banco Central do Brasil.

 

A contradição entre o que se produz e o que se acumula

Exportar commodities, como o Brasil tem feito, produz superávits comerciais. Mas o que é produzido não é o mesmo que é apropriado. A essência do processo se manifesta na remessa contínua de lucros e rendas ao exterior, uma vez que os principais setores exportadores, as plataformas logísticas e o próprio sistema financeiro são controlados por grandes conglomerados multinacionais.

O Brasil, nesse sentido, produz valor internamente, mas esse valor é realizado e apropriado externamente. O país atua como fornecedor de matérias-primas e força de trabalho barata, recursos naturais e todo um aparato social funcional para a cadeia global de valorização do capital — um papel essência à reprodução ampliada do sistema do capital internacional, mas destrutivo para a soberania, riqueza e desenvolvimento nacional.

Isto não afeta o Brasil de forma genérica ou abstrata, uma pequena parte dos brasileiros, uma classe empresarial que opera e domina o Estado, suas leis e as estruturas econômicas, eles construíram vários sistemas que viabilizam este sistema. Os mais aparentes são a dívida pública, a Petrobrás, isenção fiscal sobre exportações, as estatais privatizadas, tudo faz com que os empreendimentos deem muito lucro, que são enviados ao exterior.

Da particularidade brasileira ao mecanismo geral do imperialismo

Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil, mas nossa realidade o encarna de forma intensificada. A particularidade do capitalismo brasileiro — formado sob forte dependência econômica, com elites rentistas e seu projeto nacional dependente— faz do país especialmente subordinado às exigências estruturais do capital global.

Assim, o que é vivido como uma dificuldade "brasileira" — o déficit externo, a volatilidade cambial, o ajuste fiscal — é, em essência, a manifestação de uma forma geral do imperialismo contemporâneo: a subordinação dos países periféricos por meio das finanças, da tecnologia e do controle da balança de pagamentos.

 

Aparência: estabilidade. Essência: drenagem

Na aparência, o superávit comercial é celebrado como prova de eficiência. A entrada de capitais é tratada como "confiança do mercado". O déficit em transações correntes é considerado normal, contornável com mais exportações, endividamento ou reformas. Mas essas representações encobrem a forma real: o Brasil é uma economia funcionalmente dependente do capital internacional, mesmo quando vende mais do que compra.

A essência se revela quando analisamos os fluxos: todo esforço produtivo, toda política exportadora, toda inserção internacional terminam, em última instância, reforçando a drenagem de valor para fora do país. A moeda desvaloriza, a inflação cresce, o endividamento externo se renova — e o país gira em torno de uma instabilidade artificialmente criada, que é escondida por uma cortina de fumaça como se fosse culpa de todos os brasileiros, fruto de nosso subdesenvolvimento.

 

Desvalorização, inflação e juros: o ciclo perfeito

A resultante dos déficits nas contas externas é a desvalorização do real, que aparece como flutuação “natural” do câmbio. Mas sua essência é a relação desigual entre moedas, expressando o desequilíbrio nas trocas internacionais. Quanto mais o país precisa de dólares — para remeter lucros — mais sua moeda se enfraquece.

Esse processo eleva os preços internos, pois grande parte da nossa economia depende de insumos importados ou está vinculada aos preços internacionais de commodities. A inflação resultante corrói salários e empobrece a classe trabalhadora. Os salários baixos também são um componente da “vaca leiteira” da financeirização brasileira.

A resposta a inflação exigida pelo “mercado empresarial” e aplicada pelos governos, desde FHC passando por todos os governos do PT, é subir os juros (a Selic do BC). Os juros altos então, ampliam ainda mais os lucros dos rentistas. Reforçando um dos mecanismos da ordenha do Brasil, o “mercado” aplicam nos títulos, recebem os juros mais altos do mundo e exportam os lucros.

 

A liberdade do capital

Também aí a aparência confunde. O ingresso de capitais estrangeiros é tratado como vitória e solução da política econômica. Mas na essência á há décadas o Brasil é um exportador líquido de capitais, todo o investimento estrangeiro é realizado para retornar para fora do país, as decisões de investimento exigem retornos altos, ademais, junto com os investimentos vem a operação e controle político, pois os capitalistas sabem que só controlando o Estado, suas leis e processos que todo este estratagema é viável.

Quando o capital entra, ele entra com a exigência de sair com mais — e o Brasil paga essa diferença com reservas, instabilidade e dependência. Assim, o capital que entra hoje para "equilibrar" as contas, gera o capital que sairá amanhã multiplicado, aprofundando o desequilíbrio.

 

Consequências estruturais: o bloqueio ao desenvolvimento

O efeito acumulado de 25 anos de exportações líquidas de capital vai muito além do campo das finanças. Ele se traduz num bloqueio histórico ao desenvolvimento nacional. Eis algumas de suas consequências estruturais mais evidentes:

  • Desindustrialização crônica: os lucros extraídos do país não são reinvestidos em inovação ou modernização produtiva. Ao contrário, o país se especializa em produtos primários de baixo valor agregado, perdendo complexidade econômica.
  • Infraestrutura subfinanciada: bilhões de dólares que poderiam ser usados para expandir ferrovias, escolas técnicas ou redes de energia são drenados como dividendos e juros pagos a acionistas no exterior.
  • Dependência tecnológica: o Brasil continua importando máquinas, software e know-how, pois não acumula os investimentos de longo prazo necessários para construir soberania científica e tecnológica.
  • Crise permanente de financiamento público: para manter os fluxos de capitais externos, o país aceita amarras fiscais e juros altos que comprimem o orçamento social. Resultado: serviços públicos sucateados, políticas sociais desidratadas, e obras de infraestrutura paralisadas.
  • Reprodução do rentismo interno: as elites locais, associadas ao capital global, tem mais lucro ao aplicar em títulos e ativos financeiros do que produzir. Isso cria um sistema econômico centrado na especulação e não na produção.

Essas consequências não são erros de gestão. São resultados esperados e necessários de um projeto de país subordinado. Enquanto a classe do capital rentista mantiver sua estrutura social e seu poder dominante, o sistema do Brasil como “vaca leiteira financeira”, como uma plataforma de extração de valor para o capital transnacional, o desenvolvimento para a classe trabalhadora será sempre interrompido, adiado, prometido — mas nunca realizado.

 

A forma política do desequilíbrio: dependência e dominação de classe

A manutenção dos déficits externos está vinculada a uma forma política de organização da economia: a hegemonia do capital financeiro e internacional sobre o Estado brasileiro. A política monetária prioriza o controle da inflação via juros altos, não via reindustrialização. A política fiscal se dobra à exigência de “confiança dos investidores”, não a um projeto de desenvolvimento.

O Brasil foi organizado por sua classe capitalista, para pagar, produzindo e exportando, não para desenvolver-se. E paga, sobretudo, com o trabalho da nossa classe trabalhadora, com o corte de investimentos públicos, com a venda de patrimônio nacional.

 

O aprofundamento e a possibilidade de ruptura

Mas toda contradição contém a semente da superação. O desequilíbrio externo brasileiro não é uma falha de gestão, um erro ou uma condição natural insuperável — é expressão de uma inserção subordinada no sistema-mundo capitalista. Mas também é uma oportunidade de ruptura, os números do déficit externo e das remessas de capital são reais, assim como as consequências para a classe trabalhadora. E é na percepção dos mecanismos e seus beneficiários além das consequências danosas para nossa classe é onde está o potencial de revolta e de virada do jogo.

Romper com este sistema não é uma tarefa técnica, um entendimento do que funciona melhor, ou um convencimento dos governos. É um projeto político de classe, que exige confronto com os capitalistas nacionais, com os rentistas internos e com o capital estrangeiro.

 

Conclusão: o déficit como forma da dominação

Em síntese, o déficit em transações correntes é mais do que um indicador econômico. Ele é a forma atualizada da dominação imperialista sobre países como o Brasil, operando por dentro do Estado, do sistema financeiro, das regras de comércio, das agências de risco e das políticas de ajuste. Ele traduz, na aparência de um número, a essência de uma relação de poder em um modo como se organiza a produção e a apropriação de riqueza.

O que aparece como desequilíbrio técnico é, na essência, um desequilíbrio de poder. E só se corrige com organização e luta de classes em escala nacional e internacional.

Porque enquanto o Brasil seguir exportando excedentes do valor trabalho e importando submissão, o desenvolvimento para a classe trabalhadora será apenas uma promessa. Não devemos ficar chorando sobre o leite derramado, temos que tomar nosso destino em nossas mãos, rompendo a canga da subordinação, nos organizando para confrontar uma diminuta classe proprietária que organizou o Brasil como uma fazenda leiteira onde o nosso trabalho é o pasto a ser consumido.

 

Referências Bibliográficas

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2011.

LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo. São Paulo: Centauro, 2006.

DOS SANTOS, Theotonio. A Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011.

Azevedo, Walter. Como vencer na grande política: Classes sociais e suas lutas. Curitiba: Appris, 2023.

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