Por Walter Azevedo
Durante os últimos 25 anos, o Brasil acumulou
uma contradição estrutural em sua economia externa: mesmo apresentando
superávits comerciais em boa parte do período, viu-se aprisionado em déficits
quase permanentes nas transações correntes. Em outras palavras: vendemos mais
do que compramos, mas ainda assim "devemos". Como explicar essa
aparente incoerência?
O que se revela como paradoxo é, na verdade, a
expressão concreta da lógica do capital dependente. A aparência — a de uma
economia "forte exportadora" — esconde a essência: um país
funcionalmente subordinado na divisão internacional do trabalho e do capital,
onde os excedentes gerados pelo comércio exterior são transferidos
sistematicamente para o capital internacional via juros, lucros, royalties, serviços
e pela própria exportação de capitais.
A estrutura montada no Brasil por sua classe
dominante capitalista, subordinada e dependente ao capital do centro do
sistema, fez do país uma “vaca leiteira” financeirizada, onde vários mecanismos
operam para gerar valor ou riqueza pela estrutura econômica e social,
especificadamente pelo trabalho do brasileiro. Este valor é apropriado e
enviado para o exterior, seja pelas multinacionais, seja pelos próprios
empresários brasileiros que preferem acumular capital fora do país ao invés de
reinvestir no Brasil.
Abaixo uma tabela com os dados de Saldo
Comercial (exportações e importações) e o Saldo de Transações Correntes
(entrada e saída de capitais), para os últimos 25 anos:
Ano |
Exportações |
Importações |
Saldo Comercial |
Entradas de Capitais |
Saídas de Capitais |
Saldo Transações Correntes |
2000 |
55,1 |
55,8 |
-0,7 |
32,8 |
57 |
-24,2 |
2001 |
58,2 |
55,6 |
2,7 |
28,5 |
51,7 |
-23,2 |
2002 |
60,4 |
47,2 |
13,1 |
20,2 |
27,8 |
-7,6 |
2003 |
73,1 |
48,3 |
24,8 |
16,6 |
12,4 |
4,2 |
2004 |
96,5 |
62,8 |
33,6 |
33,4 |
21,7 |
11,7 |
2005 |
118,3 |
73,5 |
44,8 |
30,2 |
16,2 |
14 |
2006 |
137,5 |
91,4 |
46,1 |
36 |
22,4 |
13,6 |
2007 |
160,6 |
120,6 |
40 |
92 |
90,4 |
1,6 |
2008 |
197,9 |
173,2 |
24,7 |
99 |
127,2 |
-28,2 |
2009 |
153 |
127,6 |
25,3 |
47,5 |
71,8 |
-24,3 |
2010 |
201,9 |
181,6 |
20,3 |
99,8 |
147,1 |
-47,3 |
2011 |
256 |
226,3 |
29,8 |
122,3 |
174,8 |
-52,5 |
2012 |
242,5 |
223,1 |
19,3 |
112,6 |
166,8 |
-54,2 |
2013 |
242,2 |
239,6 |
2,6 |
118 |
193,9 |
-75,9 |
2014 |
225,1 |
229,1 |
-4 |
112 |
216,2 |
-104,2 |
2015 |
191,1 |
171,5 |
19,7 |
75,4 |
134,3 |
-58,9 |
2016 |
185,2 |
137,6 |
47,7 |
78,2 |
101,7 |
-23,5 |
2017 |
217,7 |
150,7 |
67 |
97 |
112 |
-15 |
2018 |
239,9 |
181,2 |
58,7 |
88,3 |
129,8 |
-41,5 |
2019 |
225,4 |
177,3 |
48 |
75,4 |
126,1 |
-50,7 |
2020 |
156,5 |
114,3 |
42,2 |
65,4 |
89,9 |
-24,5 |
2021 |
280,4 |
219,4 |
61 |
70 |
98,1 |
-28,1 |
2022 |
334,5 |
272,7 |
61,8 |
80 |
125 |
-45 |
2023 |
334,5 |
235,7 |
98,8 |
85 |
134,4 |
-49,4 |
2024 |
329,3 |
258,1 |
71,2 |
90 |
142,4 |
-52,4 |
Somatório |
4772,8 |
3874,2 |
898,5 |
1805,6 |
2591,1 |
-785,5 |
Elaboração do autor
Fontes:
·
Balança
Comercial: Ministério da Economia.
·
Saldo
em Transações Correntes: Banco Central do Brasil.
A
contradição entre o que se produz e o que se acumula
Exportar commodities, como o Brasil tem feito,
produz superávits comerciais. Mas o que é produzido não é o mesmo que é
apropriado. A essência do processo se manifesta na remessa contínua de
lucros e rendas ao exterior, uma vez que os principais setores
exportadores, as plataformas logísticas e o próprio sistema financeiro são
controlados por grandes conglomerados multinacionais.
O Brasil, nesse sentido, produz valor
internamente, mas esse valor é realizado e apropriado externamente.
O país atua como fornecedor de matérias-primas e força de trabalho barata,
recursos naturais e todo um aparato social funcional para a cadeia global de
valorização do capital — um papel essência à reprodução ampliada do sistema do
capital internacional, mas destrutivo para a soberania, riqueza e
desenvolvimento nacional.
Isto não afeta o Brasil de forma genérica ou abstrata, uma pequena parte
dos brasileiros, uma classe empresarial que opera e domina o Estado, suas leis
e as estruturas econômicas, eles construíram vários sistemas que viabilizam
este sistema. Os mais aparentes são a dívida pública, a Petrobrás, isenção
fiscal sobre exportações, as estatais privatizadas, tudo faz com que os
empreendimentos deem muito lucro, que são enviados ao exterior.
Da
particularidade brasileira ao mecanismo geral do imperialismo
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil, mas
nossa realidade o encarna de forma intensificada. A particularidade do
capitalismo brasileiro — formado sob forte dependência econômica, com elites
rentistas e seu projeto nacional dependente— faz do país especialmente subordinado
às exigências estruturais do capital global.
Assim, o que é vivido como uma dificuldade
"brasileira" — o déficit externo, a volatilidade cambial, o ajuste
fiscal — é, em essência, a manifestação de uma forma geral do imperialismo
contemporâneo: a subordinação dos países periféricos por meio das finanças,
da tecnologia e do controle da balança de pagamentos.
Aparência:
estabilidade. Essência: drenagem
Na aparência, o superávit comercial é
celebrado como prova de eficiência. A entrada de capitais é tratada como
"confiança do mercado". O déficit em transações correntes é
considerado normal, contornável com mais exportações, endividamento ou
reformas. Mas essas representações encobrem a forma real: o Brasil é uma
economia funcionalmente dependente do capital internacional, mesmo quando vende
mais do que compra.
A essência se revela quando analisamos os
fluxos: todo esforço produtivo, toda política exportadora, toda inserção
internacional terminam, em última instância, reforçando a drenagem de valor
para fora do país. A moeda desvaloriza, a inflação cresce, o endividamento
externo se renova — e o país gira em torno de uma instabilidade artificialmente
criada, que é escondida por uma cortina de fumaça como se fosse culpa de todos
os brasileiros, fruto de nosso subdesenvolvimento.
Desvalorização,
inflação e juros: o ciclo perfeito
A resultante dos déficits nas contas externas
é a desvalorização do real, que aparece como flutuação “natural” do câmbio. Mas
sua essência é a relação desigual entre moedas, expressando o desequilíbrio
nas trocas internacionais. Quanto mais o país precisa de dólares — para
remeter lucros — mais sua moeda se enfraquece.
Esse processo eleva os preços internos, pois
grande parte da nossa economia depende de insumos importados ou está vinculada
aos preços internacionais de commodities. A inflação resultante corrói salários
e empobrece a classe trabalhadora. Os salários baixos também são um componente
da “vaca leiteira” da financeirização brasileira.
A resposta a inflação exigida pelo “mercado
empresarial” e aplicada pelos governos, desde FHC passando por todos os
governos do PT, é subir os juros (a Selic do BC). Os juros altos então, ampliam
ainda mais os lucros dos rentistas. Reforçando um dos mecanismos da ordenha do
Brasil, o “mercado” aplicam nos títulos, recebem os juros mais altos do mundo e
exportam os lucros.
A liberdade
do capital
Também aí a aparência confunde. O ingresso de
capitais estrangeiros é tratado como vitória e solução da política econômica.
Mas na essência á há décadas o Brasil é um exportador líquido de capitais, todo
o investimento estrangeiro é realizado para retornar para fora do país, as
decisões de investimento exigem retornos altos, ademais, junto com os
investimentos vem a operação e controle político, pois os capitalistas sabem
que só controlando o Estado, suas leis e processos que todo este estratagema é
viável.
Quando o capital entra, ele entra com a
exigência de sair com mais — e o Brasil paga essa diferença com reservas,
instabilidade e dependência. Assim, o capital que entra hoje para
"equilibrar" as contas, gera o capital que sairá amanhã multiplicado,
aprofundando o desequilíbrio.
Consequências
estruturais: o bloqueio ao desenvolvimento
O efeito acumulado de 25 anos de exportações
líquidas de capital vai muito além do campo das finanças. Ele se traduz num
bloqueio histórico ao desenvolvimento nacional. Eis algumas de suas
consequências estruturais mais evidentes:
- Desindustrialização crônica: os
lucros extraídos do país não são reinvestidos em inovação ou modernização
produtiva. Ao contrário, o país se especializa em produtos primários de
baixo valor agregado, perdendo complexidade econômica.
- Infraestrutura subfinanciada:
bilhões de dólares que poderiam ser usados para expandir ferrovias,
escolas técnicas ou redes de energia são drenados como dividendos e juros
pagos a acionistas no exterior.
- Dependência tecnológica: o
Brasil continua importando máquinas, software e know-how, pois não acumula
os investimentos de longo prazo necessários para construir soberania
científica e tecnológica.
- Crise permanente de financiamento público: para manter os fluxos de capitais externos, o país aceita amarras
fiscais e juros altos que comprimem o orçamento social. Resultado:
serviços públicos sucateados, políticas sociais desidratadas, e obras de
infraestrutura paralisadas.
- Reprodução do rentismo interno: as
elites locais, associadas ao capital global, tem mais lucro ao aplicar em
títulos e ativos financeiros do que produzir. Isso cria um sistema
econômico centrado na especulação e não na produção.
Essas consequências não são erros de gestão.
São resultados esperados e necessários de um projeto de país subordinado.
Enquanto a classe do capital rentista mantiver sua estrutura social e seu poder
dominante, o sistema do Brasil como “vaca leiteira financeira”, como uma
plataforma de extração de valor para o capital transnacional, o desenvolvimento
para a classe trabalhadora será sempre interrompido, adiado, prometido —
mas nunca realizado.
A forma
política do desequilíbrio: dependência e dominação de classe
A manutenção dos déficits externos está
vinculada a uma forma política de organização da economia: a hegemonia do
capital financeiro e internacional sobre o Estado brasileiro. A política
monetária prioriza o controle da inflação via juros altos, não via
reindustrialização. A política fiscal se dobra à exigência de “confiança dos
investidores”, não a um projeto de desenvolvimento.
O Brasil foi organizado por sua classe
capitalista, para pagar, produzindo e exportando, não para desenvolver-se. E
paga, sobretudo, com o trabalho da nossa classe trabalhadora, com o corte de
investimentos públicos, com a venda de patrimônio nacional.
O
aprofundamento e a possibilidade de ruptura
Mas toda contradição contém a semente da
superação. O desequilíbrio externo brasileiro não é uma falha de gestão, um
erro ou uma condição natural insuperável — é expressão de uma inserção
subordinada no sistema-mundo capitalista. Mas também é uma oportunidade de
ruptura, os números do déficit externo e das remessas de capital são reais,
assim como as consequências para a classe trabalhadora. E é na percepção dos
mecanismos e seus beneficiários além das consequências danosas para nossa
classe é onde está o potencial de revolta e de virada do jogo.
Romper com este sistema não é uma tarefa
técnica, um entendimento do que funciona melhor, ou um convencimento dos
governos. É um projeto político de classe, que exige confronto com os
capitalistas nacionais, com os rentistas internos e com o capital estrangeiro.
Conclusão:
o déficit como forma da dominação
Em síntese, o déficit em transações correntes
é mais do que um indicador econômico. Ele é a forma atualizada da dominação
imperialista sobre países como o Brasil, operando por dentro do Estado, do
sistema financeiro, das regras de comércio, das agências de risco e das
políticas de ajuste. Ele traduz, na aparência de um número, a essência de uma
relação de poder em um modo como se organiza a produção e a apropriação de
riqueza.
O que aparece como desequilíbrio técnico é, na
essência, um desequilíbrio de poder. E só se corrige com organização e
luta de classes em escala nacional e internacional.
Porque enquanto o Brasil seguir exportando
excedentes do valor trabalho e importando submissão, o desenvolvimento para a
classe trabalhadora será apenas uma promessa. Não devemos ficar chorando sobre
o leite derramado, temos que tomar nosso destino em nossas mãos, rompendo a
canga da subordinação, nos organizando para confrontar uma diminuta classe
proprietária que organizou o Brasil como uma fazenda leiteira onde o nosso
trabalho é o pasto a ser consumido.
Referências
Bibliográficas
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro
I. São Paulo: Boitempo, 2011.
LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: Fase Superior do
Capitalismo. São Paulo: Centauro, 2006.
DOS SANTOS, Theotonio. A Teoria da Dependência: Balanço e
Perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. 4. ed. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 2011.
Azevedo, Walter. Como vencer na grande política: Classes
sociais e suas lutas. Curitiba: Appris, 2023.
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