Por: Walter Azevedo
A soberania digital é uma prática emergente,
originada pela crescente importância dos dados, tecnologia e infraestruturas
digitais, que são essenciais para o desenvolvimento econômico, a segurança e
soberania nacional. No caso do Brasil, a soberania digital é moldada pela força
dominante da classe capitalista, representada pelos grandes proprietários de
empresas nacionais e multinacionais, que exercem poder sobre o Estado e a
sociedade. Essa dominância define as políticas estatais sobre o tema, fazendo
com que os interesses dessa classe sejam tratados como se fossem os interesses
de toda a população. Este artigo analisa como a lógica do capital molda as
normativas brasileiras sobre soberania digital, especialmente em relação à
proteção de infraestruturas críticas, e conclui que o Estado não regulamenta a
obrigatoriedade de utilização de data centers localizados no Brasil,
evidenciando o interesse particular de uma pequena classe capitalista completamente
subordinada ao centro do capitalismo global.
Parâmetros da Soberania Digital:
a) Controle sobre Dados: Proteção de
dados pessoais e públicos, com a exigência de que a localização, o armazenamento
e o processamento de dados sejam realizados em território nacional, sujeitos à
soberania e às leis brasileiras.
b) Infraestrutura Digital: Propriedade e controle nacional sobre redes
de comunicação e data centers, garantindo resiliência e segurança contra
ataques cibernéticos e falhas técnicas.
c) Regulação e Legislação: Estabelecimento de leis de cibersegurança
robustas, focadas em crimes cibernéticos e privacidade, e normas técnicas para
o desenvolvimento, operação e segurança das tecnologias digitais.
d) Desenvolvimento Tecnológico: Fomento à inovação e pesquisa para o
desenvolvimento de tecnologias nacionais e capacitação da força de trabalho.
e) Atuação Internacional: Diplomacia digital voltada para a definição de
normas e padrões globais em acordos multilaterais sobre TI.
Dentro da lógica das sociedades capitalistas,
o Estado brasileiro atua sob a dominância da classe capitalista. Isso se
reflete na formulação de políticas públicas, na regulamentação de setores
estratégicos e na priorização dos interesses empresariais sobre os da classe
trabalhadora. No contexto da soberania digital, as ações estatais são moldadas
para atender às demandas de grandes empresas, especialmente multinacionais, em
detrimento da proteção de dados, segurança cibernética e do desenvolvimento
tecnológico nacional. Isso evidencia o abandono de um projeto de
desenvolvimento nacionalista por parte da classe empresarial.
Exemplos dessa dinâmica incluem:
- Flexibilização de Normas:
Tendência política para flexibilizar as regras de localização de dados e
segurança cibernética.
- Privatizações: Transferência de
infraestruturas críticas, como telecomunicações e processamento de dados
(vide caso CELEPAR), para o setor privado, destruindo a propriedade
pública desses recursos.
- Influência Corporativa:
Lobby de grandes empresas de tecnologia, incluindo multinacionais, para
moldar legislações, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de forma
a minimizar os impactos sobre seus negócios.
Normativas
Brasileiras e a Soberania Digital
Embora o Brasil tenha um conjunto de leis e
regulamentações que buscam garantir a soberania digital, essas normativas
refletem a influência da classe capitalista e, em muitos casos, deixam lacunas
que favorecem empresas em detrimento do interesse geral da população. Abaixo
estão as principais normativas e suas limitações:
a) Marco Civil da Internet (Lei nº
12.965/2014):
- Estabelece princípios como neutralidade da rede e privacidade de
forma genérica, mas não definiu mecanismos de fiscalização nem sanções, também
não impõe restrições às operações de empresas multinacionais.
- Exige que “dados pessoais” e registros de conexão sejam armazenados
no Brasil, mas permite exceções que beneficiam grandes corporações e não
detalha a questão de forma eficaz.
b) Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) -
Lei nº 13.709/2018:
- Regula o tratamento de dados pessoais, mas é de caráter
recomendativo, com forte influência da classe empresarial para evitar
restrições mais rigorosas.
- Permite a transferência internacional de dados sob condições
flexibilizadas em benefício das empresas.
- Exige apenas o “consentimento” do usuário, que frequentemente só
tem acesso ao serviço se consentir integralmente.
c) Política Nacional de Segurança da
Informação (PNSI) - Decreto nº 9.637/2018:
- Define diretrizes para a proteção de infraestruturas críticas no
âmbito da administração pública federal, mas não estabelece obrigações
sobre a localização de data centers ou controle de serviços de TI por
empresas estrangeiras, focando mais na segurança de dados do que na
infraestrutura de TI.
d) Estratégia Nacional de Segurança
Cibernética “e-Ciber” - Decreto nº 10.222/2020:
- Promove a proteção de infraestruturas críticas, mas não aborda de
forma contundente os riscos associados à dependência de tecnologias e
serviços estrangeiros.
- Não estabelece mecanismos robustos de monitoramento e avaliação da
eficácia das ações estratégicas.
- Não define claramente as responsabilidades dos órgãos reguladores
nem a coordenação entre órgãos públicos.
Infraestruturas
Críticas no Brasil: Definição e Normativa
As infraestruturas críticas são sistemas e
ativos essenciais para o funcionamento do país, cuja interrupção ou destruição
causaria impactos significativos na segurança nacional, economia, saúde ou
bem-estar social. No Brasil, essas infraestruturas são regulamentadas pelo
Decreto nº 9.637/2018, que estabelece diretrizes para sua proteção.
Setores considerados críticos:
- Energia: Sistemas de geração, transmissão e
distribuição de energia elétrica, petróleo e gás.
- Transportes: Redes aéreas,
marítimas, ferroviárias e rodoviárias.
- Telecomunicações:
Redes de telefonia, internet e comunicação de dados.
- Água e Saneamento:
Sistemas de abastecimento de água e tratamento de esgoto.
- Saúde: Hospitais, laboratórios e sistemas de
informação em saúde.
- Finanças: Sistema bancário, bolsas de valores e
instituições financeiras.
- Alimentação e Agricultura:
Cadeias de produção e distribuição de alimentos.
- Defesa e Segurança Pública:
Sistemas de defesa nacional, polícia e inteligência.
- Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC): Data centers, redes de comunicação e serviços de TI.
Apesar dessa definição clara, o Decreto nº
9.637/2018 não obriga que os serviços de TI utilizados por essas
infraestruturas sejam providos por data centers localizados no Brasil, o que
representa uma lacuna significativa na proteção da soberania digital, expondo o
país a riscos de segurança, já que, caso os sistemas operem em data centers no
exterior, eles podem ser desconectados ou “tomados” por uma simples decisão de
governos estrangeiros em uma situação de conflito.
4.
Imperialismo e Soberania Digital
Os Estados Unidos exercem sua força no âmbito
digital da mesma forma que exercem sua hegemonia global. Internamente, os EUA
têm uma forte normatização para proteger suas infraestruturas críticas e seu
ambiente de TI, enquanto pressionam outros países a não implementarem medidas
semelhantes, especialmente no que diz respeito ao controle do processamento e
fluxo de dados.
Normatização interna nos EUA:
- Cybersecurity Information Sharing Act (CISA): Regula o compartilhamento de informações sobre ameaças
cibernéticas entre o governo e o setor privado.
- Executive Order 13636:
Promove a adoção de práticas de segurança cibernética no setor de
infraestrutura crítica.
- Federal Information Security Management Act (FISMA): Estabelece requisitos para agências federais protegerem suas
informações e sistemas.
Pressão internacional – liberdade de fluxos de
dados é liberdade comercial:
- Cloud Act: Permite que autoridades americanas
acessem dados armazenados por empresas de tecnologia, mesmo que estejam em
servidores no exterior, pressionando outros países a não adotarem regras
rígidas sobre a localização de dados.
- Lobby contra restrições:
Empresas americanas, como Amazon, Microsoft e Google, pressionam governos
estrangeiros a não adotarem normas que exijam a localização de data
centers ou o controle do fluxo de dados, alegando que isso prejudica o
livre comércio.
Esse duplo padrão dos EUA reflete sua posição
de potência global: enquanto protegem suas próprias infraestruturas críticas e
dados nacionais, tentam impedir que outros países adotem medidas semelhantes,
mantendo sua dominância tecnológica e econômica.
A
Experiência Chinesa e o Desenvolvimento de TI
Desde a Revolução de 1949, a China tem
promovido o fortalecimento da pesquisa e do desenvolvimento internos, inclusive
na área de TI, desenvolvendo recursos e capacidades nacionais. O controle
estatal sobre infraestruturas críticas, especialmente nas áreas de
telecomunicações e TI, garante que os interesses dessas áreas estejam alinhados
com os objetivos nacionais.
A China consolidou-se como uma potência
digital ao implementar políticas estatais de proteção e incentivo à indústria
nacional de tecnologia, refletindo a decisão e o esforço nacional voltados ao
seu projeto de desenvolvimento. Esse modelo contrasta com o cenário brasileiro
atual, no qual a classe capitalista abandonou qualquer projeto de
desenvolvimento nacionalista.
Exemplos práticos do modelo chinês:
- Firewall chinês: Impede que
plataformas estrangeiras dominem o mercado digital interno, promovendo o
crescimento de empresas nacionais como Alibaba, Tencent e Huawei.
- Lei de Segurança Cibernética (2017): Exige que dados críticos sejam armazenados em servidores
localizados na China, sob a soberania do país.
- Investimentos em inovação: O
governo chinês subsidia e fomenta empresas de TI nacionais, sejam estatais
ou privadas, como Baidu e Xiaomi.
É possível que um país em desenvolvimento
construa sua soberania e seu desenvolvimento no setor de TI, mas isso requer
uma base social que sustente essa política.
A Lacuna
Crítica: Data Centers e Infraestruturas Críticas
Algo que por fim caracteriza a soberania
digital no Brasil é a ausência de normativas que obriguem o uso de data centers
localizados no território nacional para prover serviços de TI a infraestruturas
críticas. Essa lacuna expõe o país a riscos significativos, como:
- Dependência tecnológica: A
maioria dos serviços de TI utilizados por infraestruturas críticas é
controlada por empresas estrangeiras, como Amazon Web Services (AWS),
Microsoft Azure e Google Cloud.
- Riscos à segurança nacional: A
localização de dados e serviços em data centers no exterior torna o país
vulnerável a espionagem, ataques cibernéticos e pressões geopolíticas.
- Desnacionalização:
Reduz os incentivos para o desenvolvimento de data centers nacionais,
enfraquece a indústria local e aumenta a dependência de tecnologias
estrangeiras.
Razões para essa lacuna persistir:
- Pressão empresarial:
Grandes empresas de tecnologia exercem influência sobre o Estado para
evitar regulamentações que possam limitar seus negócios.
- Falta de prioridade política: A
proteção de infraestruturas críticas e a soberania digital não são
tratadas como prioridades estratégicas pelo Estado.
- Fragilidade institucional:
Órgãos reguladores, como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados
(ANPD), demonstram omissões e fragilidades, reflexo do contexto político
em que estão inseridos.
Conclusão:
Soberania Digital e Poder Político
A soberania digital no Brasil está marcada
pela dominação da classe capitalista, que define as ações estatais e as
normativas de forma a priorizar os interesses de grandes empresas nacionais e multinacionais.
A ausência de regras claras sobre a localização de data centers e o controle de
serviços de TI para infraestruturas críticas expõe o país a riscos de segurança
e dependência tecnológica.
A falta de normatização sobre data centers
nacionais é um exemplo claro de como o Estado brasileiro atua sob a lógica do
capital, rebaixando qualquer programa de soberania nacional. A soberania
digital não é apenas um conceito a ser entendido e adotado, mas sim uma
política determinada pela disputa de classe e pela hegemonia no campo político
e econômico.
Uma política voltada para a soberania nacional
se orienta pelos seguintes princípios:
- Regular rigorosamente:
Estabelecer obrigações claras para o uso de data centers localizados no
Brasil para serviços de TI em infraestruturas críticas.
- Fortalecer o controle público nacionalista: Garantir que infraestruturas críticas sejam geridas com
transparência e no interesse coletivo.
- Promover a autonomia tecnológica:
Investir no desenvolvimento de tecnologias nacionais e na formação de
profissionais qualificados.
Enquanto o Estado brasileiro continuar sob a
dominância da classe capitalista, a soberania digital permanecerá subordinada
aos interesses desta pequena classe. A luta pela soberania digital é, portanto,
uma luta pela transformação revolucionária do país no interesse da classe
trabalhadora. Somente uma nova formação social poderá adotar novos parâmetros
de desenvolvimento e soberania.
Referências:
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sociais e suas lutas. Curitiba: Appris, 2023.
DOS SANTOS, Theotonio. A Teoria da Dependência: Balanço e
Perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
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FUKUYAMA, Francis. A Grande Disrupção: Como
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Rocco, 2000.
LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: Fase Superior do
Capitalismo. São Paulo: Centauro, 2006.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. 6. ed. São
Paulo: Editora 34, 1999.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. 4. ed. Rio de
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MURRAY, Alexander. A Revolução Digital e a
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2015.
SOUSA, Sérgio. Política Digital: O Poder
dos Dados e o Controle do Estado. São Paulo: Editora FGV, 2017.
SINGER, Peter. A Ética Hacker: A Revolução
das Tecnologias e os Limites do Mercado. São Paulo: Cultura Acadêmica,
2006.
ZUBOFF, Shoshana. A Idade do Capitalismo de
Vigilância: A Luta pela Nossa Liberdade no Novo Mundo Digital. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2019.
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