domingo, 25 de maio de 2025

Soberania Digital no Brasil: A Soberania Política e suas Implicações

 Por: Walter Azevedo

A soberania digital é uma prática emergente, originada pela crescente importância dos dados, tecnologia e infraestruturas digitais, que são essenciais para o desenvolvimento econômico, a segurança e soberania nacional. No caso do Brasil, a soberania digital é moldada pela força dominante da classe capitalista, representada pelos grandes proprietários de empresas nacionais e multinacionais, que exercem poder sobre o Estado e a sociedade. Essa dominância define as políticas estatais sobre o tema, fazendo com que os interesses dessa classe sejam tratados como se fossem os interesses de toda a população. Este artigo analisa como a lógica do capital molda as normativas brasileiras sobre soberania digital, especialmente em relação à proteção de infraestruturas críticas, e conclui que o Estado não regulamenta a obrigatoriedade de utilização de data centers localizados no Brasil, evidenciando o interesse particular de uma pequena classe capitalista completamente subordinada ao centro do capitalismo global.





 

Parâmetros da Soberania Digital:

a) Controle sobre Dados: Proteção de dados pessoais e públicos, com a exigência de que a localização, o armazenamento e o processamento de dados sejam realizados em território nacional, sujeitos à soberania e às leis brasileiras.
b) Infraestrutura Digital: Propriedade e controle nacional sobre redes de comunicação e data centers, garantindo resiliência e segurança contra ataques cibernéticos e falhas técnicas.
c) Regulação e Legislação: Estabelecimento de leis de cibersegurança robustas, focadas em crimes cibernéticos e privacidade, e normas técnicas para o desenvolvimento, operação e segurança das tecnologias digitais.
d) Desenvolvimento Tecnológico: Fomento à inovação e pesquisa para o desenvolvimento de tecnologias nacionais e capacitação da força de trabalho.
e) Atuação Internacional: Diplomacia digital voltada para a definição de normas e padrões globais em acordos multilaterais sobre TI.

Dentro da lógica das sociedades capitalistas, o Estado brasileiro atua sob a dominância da classe capitalista. Isso se reflete na formulação de políticas públicas, na regulamentação de setores estratégicos e na priorização dos interesses empresariais sobre os da classe trabalhadora. No contexto da soberania digital, as ações estatais são moldadas para atender às demandas de grandes empresas, especialmente multinacionais, em detrimento da proteção de dados, segurança cibernética e do desenvolvimento tecnológico nacional. Isso evidencia o abandono de um projeto de desenvolvimento nacionalista por parte da classe empresarial.


Exemplos dessa dinâmica incluem:

  • Flexibilização de Normas: Tendência política para flexibilizar as regras de localização de dados e segurança cibernética.
  • Privatizações: Transferência de infraestruturas críticas, como telecomunicações e processamento de dados (vide caso CELEPAR), para o setor privado, destruindo a propriedade pública desses recursos.
  • Influência Corporativa: Lobby de grandes empresas de tecnologia, incluindo multinacionais, para moldar legislações, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de forma a minimizar os impactos sobre seus negócios.

Normativas Brasileiras e a Soberania Digital

Embora o Brasil tenha um conjunto de leis e regulamentações que buscam garantir a soberania digital, essas normativas refletem a influência da classe capitalista e, em muitos casos, deixam lacunas que favorecem empresas em detrimento do interesse geral da população. Abaixo estão as principais normativas e suas limitações:

a) Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014):

  • Estabelece princípios como neutralidade da rede e privacidade de forma genérica, mas não definiu mecanismos de fiscalização nem sanções, também não impõe restrições às operações de empresas multinacionais.
  • Exige que “dados pessoais” e registros de conexão sejam armazenados no Brasil, mas permite exceções que beneficiam grandes corporações e não detalha a questão de forma eficaz.

b) Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) - Lei nº 13.709/2018:

  • Regula o tratamento de dados pessoais, mas é de caráter recomendativo, com forte influência da classe empresarial para evitar restrições mais rigorosas.
  • Permite a transferência internacional de dados sob condições flexibilizadas em benefício das empresas.
  • Exige apenas o “consentimento” do usuário, que frequentemente só tem acesso ao serviço se consentir integralmente.

c) Política Nacional de Segurança da Informação (PNSI) - Decreto nº 9.637/2018:

  • Define diretrizes para a proteção de infraestruturas críticas no âmbito da administração pública federal, mas não estabelece obrigações sobre a localização de data centers ou controle de serviços de TI por empresas estrangeiras, focando mais na segurança de dados do que na infraestrutura de TI.

d) Estratégia Nacional de Segurança Cibernética “e-Ciber” - Decreto nº 10.222/2020:

  • Promove a proteção de infraestruturas críticas, mas não aborda de forma contundente os riscos associados à dependência de tecnologias e serviços estrangeiros.
  • Não estabelece mecanismos robustos de monitoramento e avaliação da eficácia das ações estratégicas.
  • Não define claramente as responsabilidades dos órgãos reguladores nem a coordenação entre órgãos públicos.

Infraestruturas Críticas no Brasil: Definição e Normativa

As infraestruturas críticas são sistemas e ativos essenciais para o funcionamento do país, cuja interrupção ou destruição causaria impactos significativos na segurança nacional, economia, saúde ou bem-estar social. No Brasil, essas infraestruturas são regulamentadas pelo Decreto nº 9.637/2018, que estabelece diretrizes para sua proteção.

Setores considerados críticos:

  • Energia: Sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, petróleo e gás.
  • Transportes: Redes aéreas, marítimas, ferroviárias e rodoviárias.
  • Telecomunicações: Redes de telefonia, internet e comunicação de dados.
  • Água e Saneamento: Sistemas de abastecimento de água e tratamento de esgoto.
  • Saúde: Hospitais, laboratórios e sistemas de informação em saúde.
  • Finanças: Sistema bancário, bolsas de valores e instituições financeiras.
  • Alimentação e Agricultura: Cadeias de produção e distribuição de alimentos.
  • Defesa e Segurança Pública: Sistemas de defesa nacional, polícia e inteligência.
  • Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC): Data centers, redes de comunicação e serviços de TI.

Apesar dessa definição clara, o Decreto nº 9.637/2018 não obriga que os serviços de TI utilizados por essas infraestruturas sejam providos por data centers localizados no Brasil, o que representa uma lacuna significativa na proteção da soberania digital, expondo o país a riscos de segurança, já que, caso os sistemas operem em data centers no exterior, eles podem ser desconectados ou “tomados” por uma simples decisão de governos estrangeiros em uma situação de conflito.

4. Imperialismo e Soberania Digital

Os Estados Unidos exercem sua força no âmbito digital da mesma forma que exercem sua hegemonia global. Internamente, os EUA têm uma forte normatização para proteger suas infraestruturas críticas e seu ambiente de TI, enquanto pressionam outros países a não implementarem medidas semelhantes, especialmente no que diz respeito ao controle do processamento e fluxo de dados.


 

Normatização interna nos EUA:

  • Cybersecurity Information Sharing Act (CISA): Regula o compartilhamento de informações sobre ameaças cibernéticas entre o governo e o setor privado.
  • Executive Order 13636: Promove a adoção de práticas de segurança cibernética no setor de infraestrutura crítica.
  • Federal Information Security Management Act (FISMA): Estabelece requisitos para agências federais protegerem suas informações e sistemas.

Pressão internacional – liberdade de fluxos de dados é liberdade comercial:

  • Cloud Act: Permite que autoridades americanas acessem dados armazenados por empresas de tecnologia, mesmo que estejam em servidores no exterior, pressionando outros países a não adotarem regras rígidas sobre a localização de dados.
  • Lobby contra restrições: Empresas americanas, como Amazon, Microsoft e Google, pressionam governos estrangeiros a não adotarem normas que exijam a localização de data centers ou o controle do fluxo de dados, alegando que isso prejudica o livre comércio.

Esse duplo padrão dos EUA reflete sua posição de potência global: enquanto protegem suas próprias infraestruturas críticas e dados nacionais, tentam impedir que outros países adotem medidas semelhantes, mantendo sua dominância tecnológica e econômica.

A Experiência Chinesa e o Desenvolvimento de TI

Desde a Revolução de 1949, a China tem promovido o fortalecimento da pesquisa e do desenvolvimento internos, inclusive na área de TI, desenvolvendo recursos e capacidades nacionais. O controle estatal sobre infraestruturas críticas, especialmente nas áreas de telecomunicações e TI, garante que os interesses dessas áreas estejam alinhados com os objetivos nacionais.

A China consolidou-se como uma potência digital ao implementar políticas estatais de proteção e incentivo à indústria nacional de tecnologia, refletindo a decisão e o esforço nacional voltados ao seu projeto de desenvolvimento. Esse modelo contrasta com o cenário brasileiro atual, no qual a classe capitalista abandonou qualquer projeto de desenvolvimento nacionalista.

Exemplos práticos do modelo chinês:

  • Firewall chinês: Impede que plataformas estrangeiras dominem o mercado digital interno, promovendo o crescimento de empresas nacionais como Alibaba, Tencent e Huawei.
  • Lei de Segurança Cibernética (2017): Exige que dados críticos sejam armazenados em servidores localizados na China, sob a soberania do país.
  • Investimentos em inovação: O governo chinês subsidia e fomenta empresas de TI nacionais, sejam estatais ou privadas, como Baidu e Xiaomi.

É possível que um país em desenvolvimento construa sua soberania e seu desenvolvimento no setor de TI, mas isso requer uma base social que sustente essa política.

A Lacuna Crítica: Data Centers e Infraestruturas Críticas

Algo que por fim caracteriza a soberania digital no Brasil é a ausência de normativas que obriguem o uso de data centers localizados no território nacional para prover serviços de TI a infraestruturas críticas. Essa lacuna expõe o país a riscos significativos, como:

  • Dependência tecnológica: A maioria dos serviços de TI utilizados por infraestruturas críticas é controlada por empresas estrangeiras, como Amazon Web Services (AWS), Microsoft Azure e Google Cloud.
  • Riscos à segurança nacional: A localização de dados e serviços em data centers no exterior torna o país vulnerável a espionagem, ataques cibernéticos e pressões geopolíticas.
  • Desnacionalização: Reduz os incentivos para o desenvolvimento de data centers nacionais, enfraquece a indústria local e aumenta a dependência de tecnologias estrangeiras.

Razões para essa lacuna persistir:

  • Pressão empresarial: Grandes empresas de tecnologia exercem influência sobre o Estado para evitar regulamentações que possam limitar seus negócios.
  • Falta de prioridade política: A proteção de infraestruturas críticas e a soberania digital não são tratadas como prioridades estratégicas pelo Estado.
  • Fragilidade institucional: Órgãos reguladores, como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), demonstram omissões e fragilidades, reflexo do contexto político em que estão inseridos.

Conclusão: Soberania Digital e Poder Político

A soberania digital no Brasil está marcada pela dominação da classe capitalista, que define as ações estatais e as normativas de forma a priorizar os interesses de grandes empresas nacionais e multinacionais. A ausência de regras claras sobre a localização de data centers e o controle de serviços de TI para infraestruturas críticas expõe o país a riscos de segurança e dependência tecnológica.

A falta de normatização sobre data centers nacionais é um exemplo claro de como o Estado brasileiro atua sob a lógica do capital, rebaixando qualquer programa de soberania nacional. A soberania digital não é apenas um conceito a ser entendido e adotado, mas sim uma política determinada pela disputa de classe e pela hegemonia no campo político e econômico.

Uma política voltada para a soberania nacional se orienta pelos seguintes princípios:

  • Regular rigorosamente: Estabelecer obrigações claras para o uso de data centers localizados no Brasil para serviços de TI em infraestruturas críticas.
  • Fortalecer o controle público nacionalista: Garantir que infraestruturas críticas sejam geridas com transparência e no interesse coletivo.
  • Promover a autonomia tecnológica: Investir no desenvolvimento de tecnologias nacionais e na formação de profissionais qualificados.

Enquanto o Estado brasileiro continuar sob a dominância da classe capitalista, a soberania digital permanecerá subordinada aos interesses desta pequena classe. A luta pela soberania digital é, portanto, uma luta pela transformação revolucionária do país no interesse da classe trabalhadora. Somente uma nova formação social poderá adotar novos parâmetros de desenvolvimento e soberania.

 

Referências:

Azevedo, Walter. Como vencer na grande política: Classes sociais e suas lutas. Curitiba: Appris, 2023.

DOS SANTOS, Theotonio. A Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

FUKUYAMA, Francis. A Grande Disrupção: Como a Globalização e a Tecnologia Estão Remodelando o Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo. São Paulo: Centauro, 2006.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 1999.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011.

MURRAY, Alexander. A Revolução Digital e a Soberania Nacional: Implicações para o Brasil. Rio de Janeiro: Editora UnB, 2015.

SOUSA, Sérgio. Política Digital: O Poder dos Dados e o Controle do Estado. São Paulo: Editora FGV, 2017.

SINGER, Peter. A Ética Hacker: A Revolução das Tecnologias e os Limites do Mercado. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2006.

ZUBOFF, Shoshana. A Idade do Capitalismo de Vigilância: A Luta pela Nossa Liberdade no Novo Mundo Digital. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

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