Por Walter Azevedo
A promessa tecnológica
As grandes empresas tecnológicas,
chamadas “Big Techs”, apresentam-se como portadoras de um novo tempo, são o
mecanismo do capital mais dinâmico em um sistema imperialista e monopolista
com sede nos EUA. Com seus algoritmos, inteligências artificiais e redes
globais com vasto capacidade de processamento, poder de capital e força
política, tem tido a capacidade de prometer muito, inclusive de democratizar o
conhecimento, multiplicar a capacidade criativa e dissolver fronteiras entre
culturas. O escritor, nessa aparência imediata, parece ter conquistado um
aliado: uma máquina que organiza, sugere, acelera, corrige.
Aqui, a afirmação dialética se mostra como possibilidade de expansão: mais
leitores podem ter acesso a livros digitalizados, mais idiomas podem ser
traduzidos em tempo real, mais pessoas podem escrever e divulgar seu pensamento
e sua arte, qualquer operador pode gerar milhares de textos, livros, ensaios,
etc.
A Inteligência Artificial (IA) aparece como uma tipografia infinita, onde cada
autor teria milhares de braços capazes de multiplicar suas palavras, sua
expressão e sua formulação.
O monopólio da linguagem
Mas, na essência, esta liberdade de
negócios que a sociedade provê as Big Techs, guarda contradições fundamentais.
O que a um tempo liberaliza, ao mesmo tempo, reforça uma apropriação privada,
que limita a liberdade do saber, em benefício do novo proprietário. As palavras
dos escritores, suas obras publicadas ou até fragmentos de blogs e redes
sociais, são extraídas sem remuneração ou reconhecimento para alimentar as
máquinas empresariais das Big Techs.
Este mecanismo tem um nome técnico,
é o “aprendizado de máquina”, absorvem toda a construção do gênio humano
desenvolvido e acumulado na história, transformam isto em dados proprietários daquelas
empresas. O sistema alcança também o que os autores humanos têm escrito e
produzido hoje, no tempo de nossas vidas. As Big Techs com suas IAs estão se
travestindo em um monstruoso chupa-cabra universal.
O escritor/autor e sua produção se veem, então, reduzidos a matéria-prima
gratuita de um processo industrial monopolista do capitalismo internacional.
- O texto autoral deixa de ser expressão singular e torna-se mero 'conteúdo' ou
dado lógico.
- O estilo, antes marca de identidade, é mimetizado estatisticamente por
modelos matemáticos.
- O valor simbólico da obra cede lugar à lógica mercantil de dados.
- A criatividade, inovação e a
singularidade são rebaixadas a um mecanismo informatizado de geração de textos.
- A subjetividade é dissolvida em números,
- A obra autoral é transformada por
algoritmos um sistema empresarial de pseudo neutralidade.
O escritor é como o mineiro que cava ouro para alimentar a riqueza de um
império, mas que, ao final do dia, não pode pagar o próprio pão.
Para além do algoritmo
A contradição entre promessa e
expropriação exige um momento de superação. Nem a recusa ingênua da tecnologia, nem a submissão ao capitalismo empresarial das Big Techs. É preciso uma nova
síntese, em que escritores e autores em geral se percebam com classe, se
organizem e realizem sua ação política, assumindo o protagonismo da luta pela
soberania da criatividade e reconhecimento de sua produção, seu trabalho, seu
direito autoral e sua remuneração.
Essa suprassunção pode se dar em várias direções:
1. Institucional: exigir regulações legais que obriguem as empresas a
reconhecer e remunerar o uso de obras autorais em treinamentos e produção de
IA.
2. Coletiva: criar cooperativas de escritores que construam seus próprios
repositórios de textos, sob licenças coletivas e controladas, para negociar com
força coletiva frente ao poder das corporações.
3. Cultural: afirmar a originalidade humana não como nostalgia, mas como força
criadora que a máquina não substituirá — porque só o ser humano vive
contradições, lutas e práticas históricas que alimentam a dialética da escrita.
4. Filosófica: o direito de autor,
assim com qualquer direito, não é “natural” ou “absoluto”, é uma convenção
social construída na história, que hoje está sendo desafiado pelas práticas materiais
de um pequeno grupo de empresas gigantes de tecnologia estrangeiras.
5. Social: não será pela reclamação
ou pelo ressentimento direcionado a um sistema material de organização do
capital internacional, a atitude deve ser a da disputa social, onde as relações
de poder são reescritas a cada novo movimento de grupos e classes sociais, aqui
e no resto do mundo.
6. Civilizacional: a soberania não
é mais um direito divino ou uma lei internacional, é uma força que um povo ou
uma classe constroem na luta e na vitória sobre as disputas fundamentais, sobre
a terra, sobre a organização social e sobre as riquezas de seu território, inclusive
a riqueza imaterial do conhecimento e a produção artística
Aparência e essência: entre a superfície e a estrutura
Na superfície, a IA aparece como
ferramenta neutra, produto inevitável do avanço técnico. Mas a essência mostra
que ela é mediação de relações de produção e de poder: a concentração de
capital em poucas mãos, a transformação do trabalho intelectual em insumo de
algoritmos e a erosão do direito autoral em favor da mercantilização empresarial
privada.
Nas profundezas dos algoritmos a essência se manifesta: todo o conhecimento
humano se transforma na reprodução do monopólio de uma classe, reforçando um
sistema que amplia a distância entre quem detém os meios digitais de produção(as
Big Techs) e aqueles que apenas fornecem seu trabalho e sua criatividade.
Mediação: da consciência individual à prática
histórica
O escritor isolado em si, na sua
individualidade, autocentrado nas suas capacidades e idiossincrasias, se coloca
numa situação de impotência. Mas a mediação entre consciência e estrutura
histórica, mostra que o individual só encontra força na identidade coletiva e
na ação de massas. A luta sindical, os movimentos de escritores e artistas, a
articulação com juristas e técnicos podem transformar a indignação e derrota individual
em potencial de vitória coletiva.
Exemplo histórico: tal como os operários tipógrafos do século XIX se depararam
com a novas empresas que implantaram novas máquinas movidas a força de
caldeiras a vapor, os escritores do século XXI não terão outra saída senão, organizar-se
contra a exploração empresarial, inteligentemente articulada, via uma nova técnica informática aplicada.
O desenvolvimento das Big Tecs também
é um movimento de massas, massas de capitais investidos em empresas, articulado
politicamente entre si e com domínio sobre os Estados nacionais, todos eles
ativos na esfera digital e na ordem política, postulando leis e jurisprudência
que lhes favoreçam. A classe do capital se move com profissionalismo político, é
dominando a subjetividade social que mantenham sua posição de dominância e suas
vantagens extraordinárias.
Da prática
Chamamos escritores, jornalistas,
poetas, roteiristas e todos que vivem da palavra:
- Organizemo-nos em sindicatos,
associações e partidos para construir nossa força coletiva.
- Realizemos a produção de textos e obras que engajem a arte, a simbologia, a
cultura, o coração e as mentes de nosso público na luta política
- Conquistemos leis que submetam as
empresas de tecnologia à transparência e remuneração no uso de nossas obras
sugadas pelas IAs.
- Criemos repositórios autônomos que protejam a produção humana, com diversidade
linguística e cultural.
- Formulemos nossa teoria a executemos na prática, derrotando o extrativismo
digital e sua estrutura empresarial.
A luta não é contra uma nova tecnologia, mas contra o domínio político de um monopólio.
A palavra, enquanto criação humana, é campo de batalha. Cabe a nós impedirmos que
ela seja reduzida a uma mercadoria sem alma e com poucos donos.
A dialética da palavra
As correntes que tememos nos perder,
não guiam nossos caminhos, mas restringem a nossa realização. São puras
correntes ideológicas que um virar de página as deixam para trás.
O futuro da escrita não será dado pelas máquinas, mas pela consciência e pela
luta daqueles que escrevem e trabalham, se estes tomarem seu destino em suas
mãos. Porque, como já escreveu Marx, 'a emancipação da classe trabalhadora deve
ser obra da própria classe trabalhadora'. Essa classe inclui também os
trabalhadores da palavra.
Excelente análise Walter, do momento crucial em que estamos vivendo com a inteligência artificial. Ou valorizamos a inteligência humana, ou vamos nos render a pasteurização dos textos criados por IA, que é fruto do trabalho de milhões de escritores. Neste ambiente de incertezas e agonia nasce o Sindicato de Escritores do Brasil, SINEBRAS, para lutar por direitos autorais e valorizar a criatividade humana. Parabens pelo artigo.
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